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quinta-feira, 3 de julho de 2008

Amadorize-se

A grande luta dos pretensos escritores ou de autores em início de carreira é a profissionalização.
O que isto quer dizer exatamente — se é uma padronização da remuneração da hora do escritor, se é a criação de sindicatos (acho que este é o suposto papel da UBE), ou qualquer outro tipo de normatização do ofício — é um mistério que um dia ainda desvendo. No entanto, este movimento me parece ser algo ultrapassado, uma mentalidade típica do século XX.


Curiosamente, enquanto eu pensava em escrever este artigo, acabei me deparando com um capítulo no livro que estou lendo — Blog! How the newest media revolution is changing politics, business, and culture — que transcrevia exatamente o que se passava na minha cabeça.

Em suma, durante boa parte do século XX, as atividades laborais tenderam à profissionalização, à regulamentação das práticas e normas de seus ofícios. Isto incluiu a criação de cursos tecnológicos, universitários, formação de sindicatos, salário-mínimo, entre várias outras conquistas do mercado de trabalho.

Enquanto o homem renascentista se orgulhava por agregar várias atribuições — matemático, físico, pintor, engenheiro, filósofo, médico, etc. — o homem moderno passou a valorizar o “recorte”, a “especialização”. Isto parece ter decorrido graças ao reconhecimento de como os saberes podem ser, individualmente, bastante vastos. No campo da Medicina, por exemplo, alguém pode passar a vida inteira estudando que não se obterá pleno conhecimento de todas as especialidades. Portanto, a especialização se tornou o signo da competência. “Restrinjo a amplidão do meu saber”, diz o homem moderno, “mas me torno o melhor naquilo que sei”.

O adjetivo “amador” se tornou algo demeritório. O amador estaria a pelo menos um nível abaixo do “profissional”. Na hora de se contratar um serviço, busca-se um profissional; recorra a um amador por sua conta e risco.

Por outro lado, o século XXI tem apresentado um panorama completamente distinto. Com o surgimento da internet, uma legião de amadores tomou conta do ciberespaço, mostrando seus trabalhos e surpreendendo, em muitos casos, pela qualidade “profissional” deles.

Fotógrafos, ilustradores, músicos, cineastas, escritores, jornalistas, amadores que estavam à margem do mundo profissional, provavelmente exercendo profissões que nada tinham à ver com tais atividades paralelas, deram suas caras a tapa e provaram que competência não residia numa faculdade, num curso técnico ou sob a égide do “profissionalismo”. E mais do que isto, o amador demonstrou ser muito mais criativo e ousado do que muitos profissionais.

Por quê?

A razão é simples, a meu ver. Não trabalhamos por prazer. Em nossos dias, trabalhamos por imposição da sociedade de consumo. Precisamos pagar as contas, alimentarmo-nos, adquirir bens de consumo, imóveis, roupas, e queremos também ostentar — jóias, automóveis, roupas de grife —, quer dizer, todos aqueles ingredientes que lubrificam as engrenagens do capitalismo. O trabalho faz parte desta estrutura de produção.

Geralmente nosso momento de prazer é durante o ócio, em nosso tempo livre. Não duvido que muita gente, na hora de escolher uma profissão, o faça crente de que fará aquilo que lhe dá prazer. E isto até pode ser verdade em alguns casos em boa parte do tempo, mas o simples fato de sermos obrigados a realizar algo (e, no caso duma profissão, provavelmente por toda a nossa vida) já é um convite à repulsa. Somos forçados a trabalhar, mas não somos forçados a termos um passatempo.

Nossos hobbies são atividades que nos dão prazer e que realizamos em nosso tempo livre. Na maioria das vezes, ninguém nos coage a isto. Escolhemos o que nos dá prazer, e o exercemos quando temos vontade. A própria palavra “amador” traz consigo este significado: aquele que ama.

O amador está livre das normas que regulamentam uma profissão. Está liberto das amarras da doutrinação e do tecnicismo. Muitas vezes, peca pela ignorância, pelo desconhecimento, mas disto acaba surgindo a originalidade.

A oposição entre amador e profissional fundada em termos de mera remuneração me parece equivocada, sob esta perspectiva. É muito mais coerente pensarmos em “aquele que é obrigado a exercer um ofício” em oposição àquele que “exerce uma atividade para deleite próprio”.
Este clamor por “profissionalização” nas Letras me parece atingir e abalar o fundamental na escrita e na Arte — não se pode obrigar alguém a criar.

Podemos até ter alguns casos na História, como a famosa imposição a Michelangelo para concluir a Capela Sistina, mas, em geral, o artista é aquele que cria independente dos resultados práticos de sua arte. Se fosse o contrário, se a Arte e a Literatura estivessem submetida às leis do comércio, obras que levam anos ou décadas para serem concluídas, como Ulisses de Joyce ou como as invendáveis pinturas de Van Gogh (que hoje valem milhões), seriam inconcebíveis, ou teriam de ser niveladas para cumprir as exigências da produção em série. Um livro por ano, ou a cada seis meses, senão o escritor não paga suas contas.

“Profissionalize-se” é nadar contra a corrente. No mundo contemporâneo, indivíduos muito competentes estão se reunindo e defendendo o ideal de que cultura e tecnologia não devem ser excludentes, que todos têm direito a elas. Por isto, surgiram projetos como a Wikipédia, sem dúvida a mais completa enciclopédia no mundo, totalmente gratuita, escrita e revisada por pessoas comuns, como eu e você, ou como os conceitos de Open Source, Copyleft, Creative Commons, que permitem aos criadores distribuírem gratuitamente seus trabalhos sem abrirem mão da autoria.

A marcha dos tempos aponta para uma direção oposta. Talvez tenhamos diante de nós novamente a imagem do homem renascentista, que desfila por entre os saberes, por entre as práticas, e as exerce livremente, para seu próprio deleite e, quem sabe, para o benefício da coletividade.

Hoje, o lema deveria ser: “amadorize-se”.

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