Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 9 de julho de 2008

"Enchendo Lingüística" na SAMIZDAT

Volmar Camargo Junior


Já estava planejando essa coluna há algum tempo. Na comunidade do Orkut da Oficina da E-TL (a mãe da SAMIZDAT), criei um tópico com esse mesmo título. O objetivo é discutir assuntos teóricos pertinentes, algo que refletisse as dúvidas momentâneas dos oficineiros. Dessa forma, resolvi transferir alguns dos melhores temas discutidos na comunidade-mãe aqui para a revista-filha. Queremos dividir com o leitor não só as nossas criações, mas também as nossas dúvidas, nossos dilemas de trabalhadores da escrita.

Nessa primeira edição do Enchendo Lingüística trago o primeiro tema que propus para os oficineiros. Os créditos da tradução e da fonte estão logo abaixo do texto.



Teses sobre o conto
(Ricardo Piglia)

1. Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.Os pontos de cruzamento são a base da construção.

4. No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

6. A versão moderna do conto que vem de Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses", abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.

7. "O Grande Rio dos Dois Corações", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.O que Hemingway faria com o episódio de Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.

8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.

9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em "La Muerte y la Brújula", a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto"; com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe"; com Emma Zunz.Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato", dizia Rimbaud.Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

Ricardo Piglia é escritor argentino, autor de, entre outros, "Respiração Artificial" (Iluminuras) e "Dinheiro Queimado (Companhia das Letras). O texto acima foi publicado originalmente em "O Laboratório do Escritor" (Iluminuras).

Tradução de Josely Vianna Baptista


Esse texto trouxe-me um problema sério. Eu nunca havia pensado em termos de "história 1" e "história 2", nem para escrever, nem para ler um conto. Agora, relembrando os textos que eu escrevi, e boa parte dos que li aqui na Oficina, chego a conclusão que essa É a regra e não a exceção.

Vamos com um exemplo prático, um conto meu: "O Convite" (publicado aqui na Samizdat mês passado).

1930. Uma menina chega em casa com os pais, após uma ida até o banco. A mãe guarda o dinheiro dentro de uma lata de farinha. O irmão chegará à noite e ela começa a arrumar a casa para o jantar em sua homenagem. Durante a faxina, a porta se abre e ela faz uma brincadeira, convidando o recém-chegado invisível para entrar. Durante a mesma noite, a menina acorda com a impressão de haver alguém dentro de casa. Em instantes, ouve-se barulho na cozinha e constata-se que um ladrão roubou as economias da família. Depois desse evento, a família começou a ficar pobre e endividada. A menina acompanha as mudanças em toda a cidade: pessoas ficam pobres de repente, bancos fecham, famílias esperam ajuda do governo até para comer. Seu pai recebe uma proposta de trabalho com o cunhado, e aceitando, põe a casa onde vivem à venda. Quando estavam fazendo a mudança, a menina dá-se conta que esqueceu o album de fotografias, voltando para a casa deserta. Em seu quarto encontra uma pessoa desconhecida e misteriosa: uma mulher velha de aparência horrível. Esta apresenta-se como a Miséria, que tempos antes a mesma menina a havia convidado gentilmente para entrar.

A história um é, obviamente, a narração desses eventos: banco, faxina, jantar, assalto, visão das mudanças na cidade, mudança de casa. A história dois é o advento do convidado invisível. A presença desse convidado, a Miséria, é explicado à medida que as coisas vão "piorando" na vida da protagonista: as economias são roubadas, o pai perdeu o emprego, o irmão afasta-se outra vez da família, as instituições bancárias vão à falência, a sua família vende a casa e precisa mudar-se.

O conto mostra-se surpreendente por causa da "ação" dessa história dois, que é revelada no final. Quanto à segunda tese, Piglia foi bastante preciso ao dizer que essa história secreta é o que vai determinar os modos que o autor vai valer-se para contá-la.



Para mim, enquanto leitor, essas teses trouxeram uma nova luz - ou melhor, uma luz mais clara para a lanterninha que eu vinha usando. Enquanto escritor... bem. Vou começar a observar melhor.

Share