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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Prelúdio de Uma Saudade

Foi no Beco das Garrafas que eu a conheci. O piano do Luis Carlos Vinhas comboiava a doce voz de Sylvia Telles quando, logo na entrada da Ma Griffe, uma garrafa vinda do alto de um edifício explodiu em minha cabeça. Os treze pontos na testa foram até abençoados pois, graças a eles e a curta paciência do pai de Eulália com a nova bossa musical que o beco irradiava, eu encontrei a mulher da minha vida. É claro que retirei a queixa na polícia quando dei de cara com aquela formosura de pequena, redondos olhos negros, cabelos de mel e pele tostada pelo sol de Copacabana.
Meu sogro de princípio deu do contra: “Onde já se viu? Namorar um boêmio?”. Tranqüilizou-se um pouco quando descobriu meu status de colunista famoso da “Última Hora”. Mesmo tendo certa ojeriza pelos membros da imprensa, seu Peçanha viu que por Eulália eu havia posto de lado as noitadas e os excessos. Acabou por aceitar o nosso namoro.
Namoro de moça de família, de pegar na mão como maior ousadia. O pessoal do jornal até estranhou e os camaradas do Beco das Garrafas deram por minha falta mas, meu sentimento por Eulália era paixão, das boas.
Casamos na Igreja de Nossa Senhora de Copacabana. Ela de véu, grinalda e flor de laranjeira, como rezava a tradicional família carioca. Fomos morar nesse apartamento na rua Rainha Elizabeth, até hoje nosso lar, e onde no momento ouço o violão de João Gilberto sair do aparelho de Cd, invadindo os cômodos, dedilhando “Chega de Saudade”. Nosso casamento tinha tudo para ser tranqüilo mas a droga da boemia falou mais alto. Em pouco tempo lá estava eu de volta às noitadas, às boates, às mulheres soltas por esta Copacabana que eu tanto amo.
Eulália agüentou tudo espartanamente. Criou nossos filhos, suportou meus porres, a falta de dinheiro, os sumiços no carnaval. Mulher de verdade.
Porém, tudo deve mesmo ter um limite pois Eulália estrilou em ódio quando descobriu o meu moleque, já com cinco anos, resultado do meu rabicho com uma guria lá dos pampas, trinta anos mais jovem, largada em Copa e que fazia ponto num inferninho chinfrim na Avenida Princesa Isabel. Não agüentei a barra pesada da situação e meu coração apitou, avisando do infarto.
Uns dias no CTI e agora me recupero aqui em casa. Como forma de punir-me pelas minhas travessuras de homem na terceira idade, minha esposa deu-me o ultimato mais dolorido que a dor dos enfartados. “Vou cuidar de você até o doutor lhe dar alta. Depois, o divórcio”, diz ela todo dia, mal despertamos. Assim, deitado nessa cama, vivo um dilema: permaneço doente ou morro de uma vez. Sem Eulália não posso viver. A cura significa o abandono. Mal penso no restabelecimento das minhas forças e já vem um prelúdio de saudade, um sofrimento de véspera. Lá na sala, João Gilberto castiga meus ouvidos com os versos: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”, acirrando a angústia. Não, Eulália! Não te quero longe de mim! A doença ou a morte!

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