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quarta-feira, 2 de julho de 2008

O Cego e o Psicopata

Por Carlos Alberto Barros


O filho-da-puta me cegou! Eu não passo de uma porra de um cego agora, sem poder fazer nada! E ele ainda está aqui. Meu Deus, queria que não estivesse, mas o desgraçado ainda está aqui.

O medo não me deixa sentir dor. Enquanto a ponta da faca perfurava meus olhos e eu quase quebrava meus dentes forçando-os uns contra os outros, ainda a sentia. Mas, agora, esqueço dela. Só consigo pensar no desespero de viver como um cego – isso, se eu não morrer aqui.

Há alguns minutos que fui amarrado numa cadeira da cozinha. Ouvi-o dizer que ia ao quarto dar um jeito na minha mulher. Miserável! Se fizer alguma coisa, eu o mato. Juro que mato!

Ouço seus passos densos percorrerem os cômodos da casa. O som vai se afastando, se transformando. O barulho do portão dos fundos é inconfundível: o maldito chegou à casinha de ferramentas. Por Cristo, o que ele quer ali? Ah, não... Por favor, não... Não deixe que encontre! Ele não é esperto, não vai olhar em cima do armário... É só um assassino burro, não vai procurar direito. Não deixe ele achar, Deus, por favor, não deixe ele achar.

O armário está se abrindo. Coisas são atiradas no chão, abrem-se gavetas. Ai, não... parece que está arrastando uma cadeira... Não... Eu suplico, não, não...

Minhas únicas companhias são a escuridão e o desespero, enquanto escuto os passos lentos retornarem. Desejo que o tempo pare, que aconteça um milagre, que Deus exista. Os passos continuam, estão mais perto. Tento lembrar como se reza um pai-nosso, penso na minha mãe, na minha esposa. Os passos estão aqui na cozinha. Cada centímetro do meu corpo treme, sinto-me gelado, pareço já estar morto. Ouço-os parar na minha frente.

– Encontrei um brinquedinho bem interessante – escuto de uma voz cínica.

– Filho-da-puta! O que você vai fazer?

– Nossa! Depois que ficou ceguinho virou macho? Calma aí, que, primeiro, vou conversar com sua querida esposa.

– Pelo amor de Deus, deixa ela ir...

– Já, já eu volto.

– Covarde! – grito – Se encostar um dedo nela, você está perdido!

– Pára de escândalo e fica com os ouvidos bem abertos.

Os passos de meu carrasco soam como uma marcha fúnebre. Cada um deles espeta-me o coração profundamente. Ao todo, são 22 estocadas. Que fossem infinitas! Jesus Cristo, quisera eu que fossem infinitas a ter que percebê-las parando e ouvir o que ouço agora. Além de cego, faça-me também surdo. Eu imploro: não me deixe ouvir.

– Não! Não! Por favor, não enfia isso em mim! – é minha esposa gritando, como quem vê algo pior que a face da morte.

Amarrado, impotente, ouvindo tudo, tento disfarçar meu desespero para acalmar o dela:

– Vai ficar tudo bem! Eu te amo! Vai ficar tudo bem! – esperneio, ouço, choro, estremeço.

– Meu amor, pede para ele parar! Não, não faz isso, pára! Aaaahh! Pede para ele parar!

Não consigo mais responder. Sinto-me o mais imprestável dos homens. Inundado pelos gritos de agonia, abandono o pouco de esperança que eu ainda carregava e simplesmente peço que o meu fim venha logo.

Minutos passados, os gritos de minha esposa tornam-se sussurros mecânicos de alguém em estado de choque. Ouço a cama rangendo, ouço os gemidos. Não agüento mais! O que ele está fazendo? O que o covarde está fazendo com a minha mulher?

Os sons param. Um breve silêncio tenta prevalecer. Surgem pequenos ruídos, indecifráveis. O que o louco ainda está tramando? Ah, não... não... Este barulho... Meu Deus, não... Por misericórdia, não!

Histérica, minha mulher alfineta meus ouvidos com longos e agudos gritos. Será que ninguém mais escuta isso? Onde estão as pragas dos vizinhos curiosos? A polícia?

Os gritos se extinguem, o barulho da morte continua. Escuto algo sendo cortado, faço uma prece, amaldiçôo Deus. Os passos... Os passos, mais carregados do que nunca, estão vindo para cá. A cada um deles, imagino o que me trarão. Minha esposa... Esteja bem, meu amor, por favor. Mais um passo: por que está acontecendo isso com a gente? Outro passo: Deus, porque nos abandonou? E outro: eu não quero morrer. Estão mais próximos, mais fortes. Não chegue aqui! Não chegue aqui! Cristo, estão já na cozinha! Parecem trazer todo o peso do mundo, sinto-os quebrar o piso. Prendo a respiração. Os passos... Pararam na minha frente.

– Ouviu como sua esposa estava se divertindo? – ouço-os falarem.

Estremeço na cadeira. Tento, em vão, me levantar.

– Onde está minha mulher, seu débil mental? O que você fez?

– Calma. Ela está bem aqui.

Sinto algo pesado cair sobre meu colo. Um líquido viscoso e quente umedece minha roupa. Não... Por Cristo, não... O desespero toma conta de mim, agito-me, o que estava em meu colo vai ao chão. Sarcástica, ressurge a voz na minha frente:

– Seja mais carinhoso... Como é que você joga assim, no chão, a cabeça de sua mulher?

– Aaaaahhh!

Por quê? Por que tudo isso? Não entendo. O que fizemos de errado? Eu... Minha mulher... A cabeça... Deus do céu! Não suporto mais, entrego os pontos.

– Por que não me mata logo, seu maníaco? Vamos, me mata! – exijo, em prantos.

Aquele barulho... Ouço, novamente, aquele barulho... Eu tinha certeza. Em cima do armário... Minha serra elétrica portátil... Ele achou minha serra elétrica... Usou lá no quarto e agora vai usar aqui. Sádico maldito! Vai usar em mim!

– Não precisamos ter pressa. Sempre te odiei, seu desgraçado. Faço questão de te matar bem devagar, pedacinho por pedacinho – fala, enquanto eu escuto o ruído da serra bem próximo ao meu ouvido.

– Mas, nem te conheço, maluco!

– Você não me conhece, mas eu te conheço.

Desde que fui amarrado nesta cadeira, fiz várias preces. E a única delas que achei que nunca seria atendida, acontece agora: o milagre. Ouço sirenes se aproximando, várias delas. Percebo os passos em ação. Correm ligeiros, vão até a sala, voltam à cozinha. As sirenes mais próximas. Mais passos em direção ao quarto, de lá, saem abruptos, como que duplicados. Parecem estar de novo na sala, abrem a porta, aceleram-se. Ouço-os distantes... Mais longe... Não ouço mais.

Junto com as sirenes, sons de carros e freios parecem muito próximos. A campainha toca várias vezes. Eu peço socorro. Alguém grita dizendo que é da polícia e que está entrando. Eu peço socorro. Os passos invadem a casa, montes deles. Graças a Deus! Graças a Deus!

– O senhor está bem? – ouço uma voz próxima perguntando.

– O louco matou minha esposa! Ele me cegou! Acabou de fugir!

– Se acalme, senhor. Já temos uma equipe fazendo busca. Vamos desamarrá-lo.

– Maníaco! Ele ia me cortar todo! Meu Deus, ia me cortar!

– Agora está tudo bem, senhor. Vamos ao hospital cuidar desses ferimentos. Depois faremos o boletim de ocorrência e daremos baixa na denúncia.

– Denúncia?

– Recebemos um telefonema de um de seus visinhos dizendo que o amante de sua esposa entrou na casa e, pouco depois, ouviram-se muitos gritos.

– Amante? Que história é essa?

– Foi o que nos disseram. Ainda não apuramos as informações.

– Mas... Minha mulher... Onde está o corpo de minha mulher?

– Não há mais ninguém na casa, senhor. Só o que encontramos foi este filhote de cachorro com o corpo cortado. Parte dele está no quarto. A outra, bem aqui na sua frente.

– O quê?

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