grunhem e cheiram mal dos pés e dos sovacos
e os dentes desacertam-se nas gengivas
e, entre cada falange, os interstícios são negros
Ah! se eu pudesse…
Se eu pudesse, mesmo, construía um mundo de peles suaves. Ou que fossem peles sarrentas, elas seriam peles rescendendo a águas de cascatas ou de rios, ou águas de um mar muito salgado que as tivesse deixado a saber a sais disto e daqueloutro.
Que as peles e os interstícios, as dobras as pregas, os buracos, tivessem sabor de terra e sabor de lama. Sabores acres de uma qualquer enxurrada ou que fosse chuvinha de Novembro ou de Agosto.
Nunca peles com sabor a suores, menos ainda desses gordurentos que se derramam por camas de hotéis de segunda e terceira classe.
Ah! se eu pudesse, se me fosse dado…
Construía um mundo sem gente sofrida e sem gente malcriada, e sem gente de olhos desconfiados, e sem gente com sorrisos a dizerem outros dizeres que não aqueles que o outro entende.
Se eu pudesse, não haveria o homem sem pernas à espera que o levem nem a criatura de cara estuprada por borbotões de carne avermelhada, e nem a velha senhora diria sílabas desligadas em vez de palavras. E nem existiria o rapaz a dizer que ouve vozes e o os outros o desdizem: lá ouves isso, agora! e ele, que sabe que “eles” o espreitam em cada esquina, sorri-se atrapalhado.
Ah! se eu tivesse o poder disso, faria as gentes perfumadas com fragrâncias suaves: assim coisa de flores silvestres ou perfumes desses imensamente caros; e faria cada um trajando roupas de um bom gosto que superasse qualquer desfile da arte: roupas a condizer com aquele que as vestisse – cada pessoa nos coloridos fatos, ou que fossem negros ou alvos, a transbordar-se de sabedoria e de bondade. E de alegria e de amor e de fraternidade.
Gente doce, afável, sorridente.
Gente bem-humorada e inteligente.
E, se chorassem, seria pelo acre de uma cebola que cortassem para a sopa de domingo ou seria por um pingo de limão que tivesse espichado ou fruta mais azeda que provassem.
Ou poderia ser um choro inominável, orgástico e incontido: esse choro que nos difere do cio dos bichos.
Choraríamos apenas por coisas lindas: porque nascera outro menino, ou outro gato, ou porque o sol se erguia, ou porque fizera já um ano e meio que se dera o facto que rememorávamos, ou por termos encontrado aquele papel escrito com apenas uma frase, ou pelo odor da gaveta que rescendia a outros tempos de felicidade.
Choraríamos também a ouvir uma sinfonia ou que fossem uns simples acordes numa gaita.
E o silêncio seria enaltecido em concomitância com o gesto: o toque de pele com pele, o sorriso, o olho a olhar o outro olho.
Ah! se eu pudesse desfazer aquele grito, aquela boca negra a ulular ao inominável e ao descompreendido…
Se eu soubesse terminar com este desfazer do corpo, este ir morrendo em sofrimento como se fosse o pago, a recompensa que os deuses dão a cada um dos seres depois todo um caminho, depois de ano após ano, segundo após segundo, depois dos sangues paridos, depois de horas de espera e de tantas águas redimindo sujidades em fedentos rios de merda.
Os deuses retalhando a seu bel-prazer.
Ah! se eu pudesse...
Fazia um mundo sem deuses e nem preces.
Um mundo de crianças e homens e mulheres
E flores e animais e fontes e mares e rios…
arrasava, com bombas e petardos, todos os hospitais
e espalhava bonecos de trapos por todas as crianças)
4 comentários:
Que texto lindo! De uma nostalgia suave, de um desejo quase prece. Diferente em textura dos outros que você escreve e, no entanto, a essência está lá. É uma Fátima meio triste, meio cansada, mas talvez mais intensa. Existe desalteração e acolhimento nesse texto. Ele fala de tristezas, mas, estranhamente, me fez sentir paz. A paz que você busca cedêsseis para todos.
*O final saiu errado por causa do corretor. É:
"A paz que você busca e deseja para todos."
Lindo, lindo! Ah, se pudéssemos!!
Lindo, lindo! Ah, se pudéssemos!!
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