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quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O céu sem estrela


Quando a ponta da minha língua tocou o céu maturado sem estrela de sua boca ávida por vida de qualquer espécie, senti minha existência desviar da rota pré-concebida pelos juramentos nunca cumpridos. Dentro de algumas horas terei de comprometer toda minha esfera de liberdade a outra esfera, algo como colisão de planetas de uma mesma galáxia leitosa, big bang diante de um Cristo crucificado, o “sim” para o caos e do caos nascerá o mundo, os frutos, o exército de um deus institucionalizado
O céu sem estrelas, o céu sem expectativas de fidelidade e mesquinharias domésticas, o céu sem dívidas, leitos, véu e bodas. O céu da boca de Jane.  A cama com pelos de gato, o mármore e a carreira que me pouparia da dor do altar e a forca banhada a ouro, e que estranhamente me provocaria alacridade, e os olhos vermelhos e constritos, como quem derrama o pranto à entrada do ser amado a caminho do altar, como quem se comove com a Ave Maria de Schubert e se rende, através das benditas lágrimas, delineando o próprio obituário; um homem abortado do ventre dos seus sonhos, um ser destinado a amar, respeitar, perdoar, sustentar, acolher a rotina, assinar a lei da concessão, sentenciando-se às intempéries de um ser essencialmente tempestuoso e erosivo e ainda contentar-se pelo sono em formato de concha agarrado à sua própria costela e, pelo raiar do sol, ainda tomado pelo afogo de quebrar o despertador, dizer um eu te amo seguido de um compartilhamento de hálitos e resiliências das poeiras mal varridas. 
Morfina, Jane, a alucinação do amor, o céu e o abismo de Jane, a via láctea no céu sem estrelas de Jane, as persianas fechadas e a sensação noturna clareando minhas memórias, os drinks, conversas fiadas, cantadas no guardanapo, o luar soprando poesia aos ouvidos, as luzes de Paris e a puta francesa, ah, como se esquecer de Angelique, o carteado com os amigos, “de tarde anoiteço, de noite ardo”. 
O gato mia e pula a janela.
Vamos, Jane. Pegue aquela lâmina e acabe logo com isso, corte o meu dedo, essa porcaria de dedo, vai. Decepa a minha vena amoris.
O amor jorrou pelos caminhos da minha mão esquerda. As pupilas arrebatadas e o riso frouxo de quem amputa um futuro indesejado. O corpo estremece.
- Vixe, dá pra aguentar ou vai precisar de morfina, noivo? – ela zombou.
- Morfina... como? Tem aí?
- Cê ta louco, homem de Deus. Bora, não vai doer tanto assim.
- Homem de Deus...?
Jane, a manicure, destroçando minha unha anular da mão esquerda. 
- Por que tudo isso, por quê?
- Pra cutícula não aparecer na foto, ué. Hoje em dia o noivo tem que se cuidar também, tem essa não. Essas fotos de não sei quantos mil mega pixels pegam até a alma da gente. 
- Até a alma? – Ri, mais descontraído.
Quando esse dia chegar, não haverá mais álbum de casamento...
Soltei um riso cínico e tornei a fechar os olhos, relaxando a cabeça no encosto de couro. Jane, minha dose de morfina imaginária. 
Tornei a explorar o céu sem estrelas de Jane.

Por Lohan Lage Pignone 

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