Quando a ponta da minha língua tocou o céu maturado
sem estrela de sua boca ávida por vida de qualquer espécie, senti minha
existência desviar da rota pré-concebida pelos juramentos nunca cumpridos.
Dentro de algumas horas terei de comprometer toda minha esfera de liberdade a
outra esfera, algo como colisão de planetas de uma mesma galáxia leitosa, big
bang diante de um Cristo crucificado, o “sim” para o caos e do caos nascerá o
mundo, os frutos, o exército de um deus institucionalizado
O céu sem estrelas, o céu sem expectativas de
fidelidade e mesquinharias domésticas, o céu sem dívidas, leitos, véu e bodas.
O céu da boca de Jane. A cama com pelos de gato, o mármore e a carreira
que me pouparia da dor do altar e a forca banhada a ouro, e que estranhamente
me provocaria alacridade, e os olhos vermelhos e constritos, como quem derrama
o pranto à entrada do ser amado a caminho do altar, como quem se comove com a
Ave Maria de Schubert e se rende, através das benditas lágrimas, delineando o
próprio obituário; um homem abortado do ventre dos seus sonhos, um ser
destinado a amar, respeitar, perdoar, sustentar, acolher a rotina, assinar a
lei da concessão, sentenciando-se às intempéries de um ser essencialmente
tempestuoso e erosivo e ainda contentar-se pelo sono em formato de concha
agarrado à sua própria costela e, pelo raiar do sol, ainda tomado pelo afogo de
quebrar o despertador, dizer um eu te amo seguido de um compartilhamento de
hálitos e resiliências das poeiras mal varridas.
Morfina, Jane, a alucinação do amor, o céu e o
abismo de Jane, a via láctea no céu sem estrelas de Jane, as persianas fechadas
e a sensação noturna clareando minhas memórias, os drinks, conversas fiadas,
cantadas no guardanapo, o luar soprando poesia aos ouvidos, as luzes de Paris e
a puta francesa, ah, como se esquecer de Angelique, o carteado com os amigos,
“de tarde anoiteço, de noite ardo”.
O gato mia e pula a janela.
Vamos, Jane. Pegue aquela lâmina e acabe logo com
isso, corte o meu dedo, essa porcaria de dedo, vai. Decepa a minha vena amoris.
O amor jorrou pelos caminhos da minha mão esquerda. As pupilas arrebatadas e o riso frouxo de quem amputa um futuro indesejado. O corpo estremece.
O amor jorrou pelos caminhos da minha mão esquerda. As pupilas arrebatadas e o riso frouxo de quem amputa um futuro indesejado. O corpo estremece.
- Vixe, dá pra aguentar ou vai precisar de morfina,
noivo? – ela zombou.
- Morfina... como? Tem aí?
- Cê ta louco, homem de Deus. Bora, não vai doer
tanto assim.
- Homem de Deus...?
Jane, a manicure, destroçando minha unha anular da
mão esquerda.
- Por que tudo isso, por quê?
- Pra cutícula não aparecer na foto, ué. Hoje em dia
o noivo tem que se cuidar também, tem essa não. Essas fotos de não sei quantos
mil mega pixels pegam até a alma da gente.
- Até a alma? – Ri, mais descontraído.
Quando esse dia chegar, não haverá mais álbum de
casamento...
Soltei um riso cínico e tornei a fechar os olhos, relaxando a cabeça no encosto de couro. Jane, minha dose de morfina imaginária.
Soltei um riso cínico e tornei a fechar os olhos, relaxando a cabeça no encosto de couro. Jane, minha dose de morfina imaginária.
Tornei a explorar o céu sem estrelas de Jane.
Por Lohan Lage Pignone
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