Eu percebi que ele estava morto por causa dos pássaros. Aquela quantidade ali sobrevoando sua humilde residência não podia ser fruto da normalidade, eu teria percebido se assim fosse, portanto foi como olhar e ver que sim, ele estava morto. E a prova disso eram os pássaros.
O velho Pontes. Morto. Entrando em estado de putrefação em
sua cama mijada de velho, sem que ninguém pudesse sequer sentir-lhe o cheiro. A
casa rodeada de pássaros negros e blasés, alguns até arrogantes, uma mistura de
filme do Hitchcock com desenho do Pica Pau. Aquele do — você falou em pipoca? —
corvo dançarino. Você sabe do que eu estou falando.
Malditos pássaros.
Pensei em ligar pra polícia, mas eu odiava telefones, e
odiava a polícia, e também não sabia se era pra chamar mesmo a polícia numa
situação onde não havia acontecido nenhum crime, então resolvi esperar até que
alguém o fizesse. É claro que acabariam percebendo os pássaros, é claro que
aquela quantidade de pássaros em volta da casa do velho Pontes não era normal. Pelo
menos não na ausência do velho e seu saco de pipocas, milho ou o que quer que
fosse que ele costumava jogar pra eles de manhã.
Fazia anos que eu o observava, todas as manhãs, sentado num
banco de madeira, desses que chamamos tamborete, alimentando pássaros na frente
de sua casa, pássaros negros que surgiam sabe lá de onde e iam embora tão logo
a distribuição gratuita de mimos terminasse. Sempre sozinho, o velho, com
exceção é claro dos pássaros, se é que podemos chamá-los de companhia. O velho
passou a ser parte do cenário que eu encontrava todas as manhãs ao sair para a
minha corrida matutina, e eu o cumprimentava rapidamente com um aceno de
cabeça, que ele respondia com um quase inaudível bom dia.
Mas agora o velho estava morto, e os pássaros estavam com
fome.
Não havia outra possibilidade. Eu vira o velho sentado
naquele tamborete em dias de chuva e de sol, em natais e carnavais, sempre com
a mesma parcimônia, sempre com a mesma dedicação. Se ainda estivesse vivo,
tenho certeza, estaria exatamente ali, alimentando os pássaros, como todos os
dias anteriores àquele dia.
Fiquei a me perguntar como aconteceu. O óbvio é que morrera
enquanto dormia. Ele era muito velho e velhos podem morrer a qualquer momento.
Pensando bem, qualquer pessoa pode morrer a qualquer momento, mas é mais
provável que isso aconteça com velhos. É o que eu acho, de qualquer modo.
Quanto tempo até que alguém percebesse que o velho estava
morto? Minha esperança era que não antes que o cheiro, o cheiro da carne podre
começasse a incomodar. Aquelas notícias que eu costumava ver na internet de
velhos que morriam em seus apartamentos e só eram encontrados por causa do
cheiro, e às vezes nem por isso, sempre me deixavam triste, pensativo sobre a
solidão.
Olhei novamente para a casa. Pássaros por todo lugar. Alguns
esperavam pacientemente, outros bicavam a janela, a porta.
Maldito velho solitário.
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