Sentada na beira da cama, inexpressiva, ela deixa que ele a vista com o vestido azul brilhante. O batom vermelho e os cabelos arrumados como os de uma boneca importada são detalhes que ele ajeita com meticulosidade assustadora. Com as mãos trêmulas, ele prossegue, tirando do bolso da camisa um par de brincos pingentes. São caros e já foram usados. Ela não é a primeira. Longe disso. É de meninas como ela que ele sobrevive faz tempo. Muito tempo. Meninas compradas por algum dinheiro, meninas que ninguém quer. Ele quer. Com a obscenidade dos monstros.
Não sente culpa. São elas as culpadas. Os demônios que o fazem desejar e obter. São elas, e seus olhos ainda sem história, e seus corpos ainda sem forma, que o atraem para o pecado. Por isso ele as odeia. Criaturas malignas. Feitas para lançar no inferno homens como ele, que não resistem à pureza.
É um vício caro. Porque ele não repete nenhuma delas. Uma vez tocadas, não servem mais. Mas de onde vem uma, vêm todas. Histórias e histórias que se repetem nas ruas e nas periferias miseráveis. Todos os dias. Meninas oferecidas por pais e parentes em troca de pouco dinheiro. Ou espalhadas por avenidas e portas de cinemas, de teatros, de igrejas, em bandos barulhentos. Ninguém sabe delas. Ninguém quer saber. Ele quer.
Geralmente, o cafetão as entrega num quarto de motel. Mas acontece de ele mesmo ir buscá-las, quando os instintos se descontrolam em urgência. As roupas, no entanto, ele faz questão de escolher. Cada vestido, cada sapato, cada colar ou brinco. Os batons e a maquilagem dos olhos são baratos. Comprados sempre em lojas diferentes, mas com a mesma desculpa: presentes para a esposa. Como se a dele usasse batom barato, maquilagem barata. Como se a dele não fosse tratada a coisas caras. Como se a dele se prestasse às imundícies que ele comete nos motéis. A cadela de luxo que não quer lhe dar filhos. Ela jura que não pode, mas ele sabe que é mentira. Logo ele não é pai. Ele que quer tanto as suas próprias crianças para ninar e pôr para dormir. Para serem só suas.
Faltam apenas as sandálias. Mas ela continua sentada na beira da cama. Esperando. Indefesa como todos os impotentes. Pensando que nas ruas estaria dormindo no chão duro, sem ter o que comer. Que estaria fugindo do cafetão que bate em todas as meninas como ela. Que estaria com frio. Apenas por isso, e por tudo isso, ela acredita que tem sorte de ter sido escolhida. E olha a boneca bonita e sorridente que ele lhe deu. A boneca que é mais cara do que ela. Mais limpa. Mais feliz.
Ele a toca. E ela pensa que talvez seja melhor dormir na rua, com fome, sobre o chão duro forrado com pedaços de papelão das caixas de supermercado, agarrando-se às outras meninas para não sentir frio. Mas também pensa em tudo o que mais quer: a boneca. Tão bonita, tão limpa, tão feliz.
Então, ela se lembra do pequeno presente que as meninas mais velhas lhe deram. Confere, cuidadosamente, sob a língua desacostumada, o aço da gilete. Ele se ajoelha para lhe calçar as sandálias douradas, de salto alto. Assim, os dois na mesma altura, ele lhe parece apenas o que é: um bicho pronto a dar o bote. Um bicho que agora esguicha sangue no vestido azul.
Lentamente, ela começa a tirar aquela roupa suja, mas sempre olhando para ele. Para as mãos que pararam de tocá-la e que agora tentam estancar o sangue que jorra do pescoço. Para os olhos que se desesperam, esbugalhados. Para o corpo que se contorce grotescamente. E os sons da besta em agonia estranhamente a alegram.
Ela não chora. Não pode. A boneca bonita, toda suja de sangue, precisa dela. Coitadinha.
5 comentários:
Tão cortante quanto a gilete empunhada pela menina, Cinthia. É sempre bom lê-la.
Que texto! Que texto! Parabéns, Cinthia. Estou sem fala.
Obrigada, Tatiana e Cecília!
"A boneca que é mais cara do que ela. Mais limpa. Mais feliz." Puxa, seu texto parece se encaixar perfeitamente na corrente do #meuamigosecreto! Lindo, de tão triste.
Obrigada, Maria Amélia!
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