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segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Sem retorno



Como em todas as noites, de todos os dias que me conheço como gente, aquela situação se repete. Já perdi tempo demais pensando que, pelo simples fato de ter nascido e não ser desejada, aquele era um castigo justo pelos danos que causei e viria a causar por ter me intrometido naquela família. Tentei, por inúmeras vezes, mudar meu comportamento a fim de agradar aquelas pessoas que me puseram no mundo. Me humilhei, me arrastei aos seus pés enquanto esperava aprovação, ou ao menos um pequeno gesto de carinho; sem sucesso.

Para o meu bem, e para a raiva deles, eu cresci e comecei a conhecer a vida. O ser autômato, que se subordinava mecanicamente às vontades dos seus senhores, também desenvolveu pensamentos próprios, e eles não eram mais o centro do meu universo. Apenas uma parte pequena e obscura, mas, ainda assim, um grande sofrimento. Eles tentaram, de todos os modos, me tolher de tudo que a vida me oferecia – de bom ou ruim, não importava. Passei a entender que, para eles, eu era uma boneca, manipulável. Mas acho que nunca irei compreender o porque de tal comportamento, os motivos que os levaram a me tratar daquele jeito.

Ajuda? Sim, quando entrei na adolescência procurei por pessoas que estivessem dispostas a me ouvir e tomar alguma providência, mas, por medo ou respeito demais àqueles senhores distintos, que formam um casal perfeito aos olhos da sociedade – hipócrita e machista, diga-se –, quase todos me viraram as costas. Minhas esperanças caiam por terra, até uma pessoa cruzar meu caminho.

Professora Lúcia, nunca esquecerei, devolveu-me a fé e a confiança na vida. Com seu jeito simples, mas com palavras que tocavam fundo no coração, ela conseguiu me fazer suportar mais alguns anos de provação. Por ela eu me mantive forte, confiando em um futuro que traria a libertação, acreditando que ainda seria possível ser feliz. Ela foi a única pessoa que, verdadeiramente, tentou me ajudar. Não teve medo em bater de frente com meus opressores, e por isso pagou um preço alto. Eu não tinha noção do poder deles naquela cidade, até a professora desaparecer no dia seguinte ao encontro que teve com meus progenitores. Nunca mais a vi. A vida mostrava que podia, sim, se tornar pior do que estava.

Constatei que, de uma hora para outra, toda a evolução e autoconfiança que eu tinha conquistado estando em contato com o mundo e com a professora Lúcia estavam escorrendo pelas minhas mãos. Me sentia frágil e sem forças para reagir. Aquilo me angustiava e, ao mesmo tempo, me deixava inerte. Era como andar no escuro. Eu tateava e não encontrava a saída. Nesse momento, eles passaram a ter novamente domínio completo sobre mim. Eu não sabia mais como progredir.

Porém, a vida é repleta de surpresas, e nada permanece do mesmo jeito por muito tempo. De alguma forma, as doses diárias de tortura psicológica, combinadas com esporádicas seções de espancamento – que tinham o objetivo, segundo meus genitores, de que eu assimilasse seus ensinamentos – teriam que acabar. Nessa noite, especificamente, aquela espécie de ritual seria o último. E eu o aceito com passividade. Tivessem algum bom senso, eles perceberiam que há um clima diferente no ar, mas, egocêntricos como são, devem achar que me rendi aos seus métodos.

A madrugada, silenciosa e misteriosa, invade meu quarto. A ansiedade por esse momento se transforma, agora, em apreensão. Fico atenta aos mínimos barulhos enquanto abro o armário e junto minhas roupas em uma pequena mala. Pego meus documentos na gaveta da escrivaninha e alguns itens que considero essenciais. Me visto rapidamente e observo aquele ambiente por alguns segundos antes de deixá-lo. Não fui feliz aqui, mas acho que vou sentir um pouco de saudade. À porta do quarto, fico com os olhos bem abertos, mesmo na escuridão quase completa, e com os ouvidos atentos, para não ser surpreendida. Caminho cuidadosamente para as escadas e piso os degraus com paciência. Vou para o escritório e abro uma das gavetas do armário de livros. Nela há uma pequena quantia em dinheiro que eles guardam. Para evitar ressentimentos, penso que estou fazendo um saque da indenização pela qual tenho direito pelos danos causados a minha educação. Na cozinha, retiro do bolso uma carta amassada que escrevi há alguns dias para os meus progenitores e a coloco sobre a mesinha. Vou para a sala, abro a porta e a fecho com cuidado, sem olhar para trás.

. . . . .

Pelo espelho retrovisor, vejo nada nostalgicamente as luzes da cidade que vão ficando para trás. À frente, a vasta escuridão provoca um frio na barriga, ao mesmo tempo que sinto uma excitação pelo mundo que está prestes a ser desbravado. Sorrio e percebo descer algumas lágrimas pelo meu rosto. Pela emoção do momento ou pelo que ficou para trás? Formulo a pergunta deixando-a perigosamente sem resposta. Não deveria estar confusa em um momento tão importante, acalentado por tanto tempo, mas me sinto um pouco deslocada. Olho para o lado, e o que vejo me deixa ainda mais preocupada.

O rosto do meu namorado assumiu um semblante carregado. Não deveria haver nada com que me preocupar – ele me ama, quer fazer isso por mim... por nós. Coloco minha mão sobre sua coxa, mas ele não esboça reação. Meus cabelos param de esvoaçar ao vento. Estamos parando. Já no acostamento ele soca o volante, depois fecha os olhos e recosta a cabeça no banco. Pergunto, algumas vezes, o que ele tem, o que está acontecendo, mas não há resposta. Estou ficando assustada. Ele faz sinal com a mão para que eu espere, e sai do carro. Anda alguns metros à frente, iluminado pelo farol. Ele parece perdido, desesperado. A sensação boa de minutos atrás se esvaiu completamente.

Eu reconheço essa reação. Foi assim que o conheci. Foi assim que descobrirmos que nossas vidas, por mais antagônicas que fossem, se assemelhavam em pelo menos um ponto: nossas famílias. Dois anos mais velho do que eu, ele estava há seis meses de prestar o vestibular em diversas faculdades públicas para o curso de administração de empresas. Ele ainda não sabia o que queria fazer, se essa era sua verdadeira vocação, mas não havia diálogo com os pais. Eles diziam saber o que era melhor para Alex, e até traçaram um extenso e detalhado plano de carreira para o filho no negócio da família, até o dia em que se tornasse presidente da empresa.

Nos encontramos por acaso na biblioteca da escola. O lugar estava cheio e só havia uma cadeira na mesa que Alex ocupava junto com alguns livros. Perguntei se podia sentar e, sem me olhar, ele disse que sim. Não consegui me concentrar em ler meu livro. Ficava observando Alex, tentando não dar muita bandeira. Não só pela beleza, mas o que me chamou atenção foi o seu semblante fechado. Consegui ler um ou outro título dos livros que ele estava estudando, então percebi que ele era mais velho e estava provavelmente estudando para o vestibular. Puxei assunto. Ele hesitou um pouco no começo, mas depois relaxou. Começamos a nos ver e conversar quase diariamente, sempre na escola, nos intervalos. Aos poucos, começamos a matar aulas, e já não tinha mais porque fingir que não estávamos gostando um do outro. O nosso namoro acabou ficando restrito ao âmbito escolar – meus progenitores não me deixavam sair sozinha; os pais dele cobravam dedicação total aos estudos.

A decisão de fugir de nossas casas foi minha. Alex não ficava empolgado quando eu falava da ideia, mas estava desesperado com a proximidade do vestibular – da responsabilidade de uma vida já planejada que estava por vir. Pelo meu lado, eu ficava cada vez mais encantada com todas as possibilidades que aquela atitude abriria para mim. Era a oportunidade perfeita. Alex não tinha carteira de motorista, mas sabia dirigir e o pai já lhe dera um carro. Ele tinha dinheiro numa conta poupança, e eu podia pegar alguma quantia dentro de casa. Assim, poderíamos ir para bem longe e começar uma vida a dois com um certo conforto. Em alguns dias, Alex disse que concordava com a ideia, e estava disposto a tudo. Eu devia ter desconfiado que seu semblante não dizia o mesmo.

Quando retorna ao carro, hesitante, ele diz que não pode continuar, que aquilo não está certo, que vamos nos arrepender e aí já terá sido tarde demais e nossos pais não vão nos perdoar. Por um tempo, não digo nada. Apenas o contemplo, enquanto ele faz de tudo para não me olhar nos olhos. Meu corpo todo rejeita o simples pensamento de voltar para casa. Saio do carro. Abro a porta de trás, pego minha mala e sigo em frente pela estrada enquanto Alex me pergunta, repetidamente, o que estou fazendo. As luzes do carro se aproximam e ele emparelha ao meu lado. Não paro. Ele vai junto e pede para eu entrar no carro e conversarmos. Eu continuo. Ele implora, então me rendo por um momento. Abro a porta mas não entro. Coloco a mala no chão e sento sobre ela no acostamento. Do seu jeito apaziguador, Alex argumenta que podíamos tentar conversar com nossos pais, juntos. Que, de alguma forma, poderíamos convencê-los a nos deixarem sermos donos das nossas próprias vidas. Ele fala por algum tempo, mas não presto mais atenção em suas palavras. Apesar do pouco tempo que o conheço, sinto que ele está com medo. Digo isso à Alex, e ele tenta se justificar. Entendo, então, que criei expectativas que nunca poderiam ser correspondidas. Ele não é o homem da minha vida, como cheguei a sonhar, e não vai contrariar os pais. Vejo isso mais claramente em seus olhos agora, e esse é só mais um duro golpe que preciso suportar em minha vida. Entro no carro e beijo Alex. Um beijo de despedida. Pego a minha mala, fecho a porta do carro e torno a andar. Dessa vez, Alex não diz nada. Ouço o motor do carro, a luz dos faróis que se aproxima e desaparece. Paro e olho para trás. Vejo o carro se afastar de volta à cidade.

. . . . .

Com o dia clareando, tudo parece ficar mais fácil. A estrada, mesmo infinita aos olhos, parece sempre levar à algum lugar. Um lugar que me proporcione uma nova vida.

Tive sorte em conseguir carona em um ônibus depois de algumas horas andando a pé. Quando chegar na última parada no final do trajeto, decidirei para onde seguir.

Neste momento, meus progenitores devem estar acordando. Ela vai ser a primeira a ir à cozinha. Quando ler a carta, subirá correndo as escadas e entrará em meu quarto. A cama, desarrumada, ainda lhe dará um certo alívio. Quando abrir o guarda-roupa, descerá as escadas gritando para ele, e seguirão direto para o escritório. Ele abrirá a gaveta onde guarda o dinheiro, e não o encontrará. Ela ficará, de um lado para o outro, gritando o meu nome, e perguntando às paredes o que há de errado comigo. Ele sentará na sua poltrona e remoerá sua raiva. Gostaria de ver essa cena, mas me contento em apenas imaginá-la. E é assim que quero que seja daqui pra frente – o passado apenas como uma imagem distante, sem volta.



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Foto: The Road Goes On Forever, de Bob Jagendorf. Original aqui.

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