Como em todas as noites, de todos os dias que me conheço como gente, aquela situação se repete. Já perdi tempo demais pensando que, pelo simples fato de ter nascido e não ser desejada, aquele era um castigo justo pelos danos que causei e viria a causar por ter me intrometido naquela família. Tentei, por inúmeras vezes, mudar meu comportamento a fim de agradar aquelas pessoas que me puseram no mundo. Me humilhei, me arrastei aos seus pés enquanto esperava aprovação, ou ao menos um pequeno gesto de carinho; sem sucesso.
Para
o meu bem, e para a raiva deles, eu cresci e comecei a conhecer a
vida. O ser autômato, que se subordinava mecanicamente às vontades
dos seus senhores, também desenvolveu pensamentos próprios, e eles
não eram mais o centro do meu universo. Apenas uma parte pequena e
obscura, mas, ainda assim, um grande sofrimento. Eles tentaram, de
todos os modos, me tolher de tudo que a vida me oferecia – de bom
ou ruim, não importava. Passei a entender que, para eles, eu era uma
boneca, manipulável. Mas acho que nunca irei compreender o porque de
tal comportamento, os motivos que os levaram a me tratar daquele
jeito.
Ajuda?
Sim, quando entrei na adolescência procurei por pessoas que
estivessem dispostas a me ouvir e tomar alguma providência, mas, por
medo ou respeito demais àqueles senhores distintos, que formam um
casal perfeito aos olhos da sociedade – hipócrita e machista,
diga-se –, quase todos me viraram as costas. Minhas esperanças
caiam por terra, até uma pessoa cruzar meu caminho.
Professora
Lúcia, nunca esquecerei, devolveu-me a fé e a confiança na vida.
Com seu jeito simples, mas com palavras que tocavam fundo no coração,
ela conseguiu me fazer suportar mais alguns anos de provação. Por
ela eu me mantive forte, confiando em um futuro que traria a
libertação, acreditando que ainda seria possível ser feliz. Ela
foi a única pessoa que, verdadeiramente, tentou me ajudar. Não teve
medo em bater de frente com meus opressores, e por isso pagou um
preço alto. Eu não tinha noção do poder deles naquela cidade, até
a professora desaparecer no dia seguinte ao encontro que teve com
meus progenitores. Nunca mais a vi. A vida mostrava que podia, sim,
se tornar pior do que estava.
Constatei
que, de uma hora para outra, toda a evolução e autoconfiança que
eu tinha conquistado estando em contato com o mundo e com a
professora Lúcia estavam escorrendo pelas minhas mãos. Me sentia
frágil e sem forças para reagir. Aquilo me angustiava e, ao mesmo
tempo, me deixava inerte. Era como andar no escuro. Eu tateava e não
encontrava a saída. Nesse momento, eles passaram a ter novamente
domínio completo sobre mim. Eu não sabia mais como progredir.
Porém,
a vida é repleta de surpresas, e nada permanece do mesmo jeito por
muito tempo. De alguma forma, as doses diárias de tortura
psicológica, combinadas com esporádicas seções de espancamento –
que tinham o objetivo, segundo meus genitores, de que eu assimilasse
seus ensinamentos – teriam que acabar. Nessa noite,
especificamente, aquela espécie de ritual
seria o último. E eu o aceito com passividade. Tivessem algum bom
senso, eles perceberiam que há um clima diferente no ar, mas,
egocêntricos como são, devem achar que me rendi aos seus métodos.
A
madrugada, silenciosa e misteriosa, invade meu quarto. A ansiedade
por esse momento se transforma, agora, em apreensão. Fico atenta aos
mínimos barulhos enquanto abro o armário e junto minhas roupas em
uma pequena mala. Pego meus documentos na gaveta da escrivaninha e
alguns itens que considero essenciais. Me visto rapidamente e observo
aquele ambiente por alguns segundos antes de deixá-lo. Não fui
feliz aqui, mas acho que vou sentir um pouco de saudade. À porta do
quarto, fico com os olhos bem abertos, mesmo na escuridão quase
completa, e com os ouvidos atentos, para não ser surpreendida.
Caminho cuidadosamente para as escadas e piso os degraus com
paciência. Vou para o escritório e abro uma das gavetas do armário
de livros. Nela há uma pequena quantia em dinheiro que eles guardam.
Para evitar ressentimentos, penso que estou fazendo um saque da
indenização pela qual tenho direito pelos danos causados a minha
educação. Na cozinha, retiro do bolso uma carta amassada que
escrevi há alguns dias para os meus progenitores e a coloco sobre a
mesinha. Vou para a sala, abro a porta e a fecho com cuidado, sem
olhar para trás.
.
. . . .
Pelo
espelho retrovisor, vejo nada nostalgicamente as luzes da cidade que
vão ficando para trás. À frente, a vasta escuridão provoca um
frio na barriga, ao mesmo tempo que sinto uma excitação pelo mundo
que está prestes a ser desbravado. Sorrio e percebo descer algumas
lágrimas pelo meu rosto. Pela emoção do momento ou pelo que ficou
para trás? Formulo a pergunta deixando-a perigosamente sem resposta.
Não deveria estar confusa em um momento tão importante, acalentado
por tanto tempo, mas me sinto um pouco deslocada. Olho para o lado, e
o que vejo me deixa ainda mais preocupada.
O
rosto do meu namorado assumiu um semblante carregado. Não deveria
haver nada com que me preocupar – ele me ama, quer fazer isso por
mim... por
nós.
Coloco minha mão sobre sua coxa, mas ele não esboça reação. Meus
cabelos param de esvoaçar ao vento. Estamos parando. Já no
acostamento ele soca o volante, depois fecha os olhos e recosta a
cabeça no banco. Pergunto, algumas vezes, o que ele tem, o que está
acontecendo, mas não há resposta. Estou ficando assustada. Ele faz
sinal com a mão para que eu espere, e sai do carro. Anda alguns
metros à frente, iluminado pelo farol. Ele parece perdido,
desesperado. A sensação boa de minutos atrás se esvaiu
completamente.
Eu
reconheço essa reação. Foi assim que o conheci. Foi assim que
descobrirmos que nossas vidas, por mais antagônicas que fossem, se
assemelhavam em pelo menos um ponto: nossas famílias. Dois anos mais
velho do que eu, ele estava há seis meses de prestar o vestibular em
diversas faculdades públicas para o curso de administração de
empresas. Ele ainda não sabia o que queria fazer, se essa era sua
verdadeira vocação, mas não havia diálogo com os pais. Eles
diziam saber o que era melhor para Alex, e até traçaram um extenso
e detalhado plano de carreira para o filho no negócio da família,
até o dia em que se tornasse presidente da empresa.
Nos
encontramos por acaso na biblioteca da escola. O lugar estava cheio e
só havia uma cadeira na mesa que Alex ocupava junto com alguns
livros. Perguntei se podia sentar e, sem me olhar, ele disse que sim.
Não consegui me concentrar em ler meu livro. Ficava observando Alex,
tentando não dar muita bandeira. Não só pela beleza, mas o que me
chamou atenção foi o seu semblante fechado. Consegui ler um ou
outro título dos livros que ele estava estudando, então percebi que
ele era mais velho e estava provavelmente estudando para o
vestibular. Puxei assunto. Ele hesitou um pouco no começo, mas
depois relaxou. Começamos a nos ver e conversar quase diariamente,
sempre na escola, nos intervalos. Aos poucos, começamos a matar
aulas, e já não tinha mais porque fingir que não estávamos
gostando um do outro. O nosso namoro acabou ficando restrito ao
âmbito escolar – meus progenitores não me deixavam sair sozinha;
os pais dele cobravam dedicação total aos estudos.
A
decisão de fugir de nossas casas foi minha. Alex não ficava
empolgado quando eu falava da ideia, mas estava desesperado com a
proximidade do vestibular – da responsabilidade de uma vida já
planejada que estava por vir. Pelo meu lado, eu ficava cada vez mais
encantada com todas as possibilidades que aquela atitude abriria para
mim. Era a oportunidade perfeita. Alex não tinha carteira de
motorista, mas sabia dirigir e o pai já lhe dera um carro. Ele tinha
dinheiro numa conta poupança, e eu podia pegar alguma quantia dentro
de casa. Assim, poderíamos ir para bem longe e começar uma vida a
dois com um certo conforto. Em alguns dias, Alex disse que concordava
com a ideia, e estava disposto a tudo. Eu devia ter desconfiado que
seu semblante não dizia o mesmo.
Quando
retorna ao carro, hesitante, ele diz que não pode continuar, que
aquilo não está certo, que vamos nos arrepender e aí já terá
sido tarde demais e nossos pais não vão nos perdoar. Por um tempo,
não digo nada. Apenas o contemplo, enquanto ele faz de tudo para não
me olhar nos olhos. Meu corpo todo rejeita o simples pensamento de
voltar para casa. Saio do carro. Abro a porta de trás, pego minha
mala e sigo em frente pela estrada enquanto Alex me pergunta,
repetidamente, o que estou fazendo. As luzes do carro se aproximam e
ele emparelha ao meu lado. Não paro. Ele vai junto e pede para eu
entrar no carro e conversarmos. Eu continuo. Ele implora, então me
rendo por um momento. Abro a porta mas não entro. Coloco a mala no
chão e sento sobre ela no acostamento. Do seu jeito apaziguador,
Alex argumenta que podíamos tentar conversar com nossos pais,
juntos. Que, de alguma forma, poderíamos convencê-los a nos
deixarem sermos donos das nossas próprias vidas. Ele fala por algum
tempo, mas não presto mais atenção em suas palavras. Apesar do
pouco tempo que o conheço, sinto que ele está com medo. Digo isso
à Alex, e ele tenta se justificar. Entendo, então, que criei
expectativas que nunca poderiam ser correspondidas. Ele não é o
homem da minha vida, como cheguei a sonhar, e não vai contrariar os
pais. Vejo isso mais claramente em seus olhos agora, e esse é só
mais um duro golpe que preciso suportar em minha vida. Entro no carro
e beijo Alex. Um beijo de despedida. Pego a minha mala, fecho a porta
do carro e torno a andar. Dessa vez, Alex não diz nada. Ouço o
motor do carro, a luz dos faróis que se aproxima e desaparece. Paro
e olho para trás. Vejo o carro se afastar de volta à cidade.
.
. . . .
Com
o dia clareando, tudo parece ficar mais fácil. A estrada, mesmo
infinita aos olhos, parece sempre levar à algum lugar. Um lugar que
me proporcione uma nova vida.
Tive
sorte em conseguir carona em um ônibus depois de algumas horas
andando a pé. Quando chegar na última parada no final do trajeto,
decidirei para onde seguir.
Neste
momento, meus progenitores devem estar acordando. Ela vai ser a
primeira a ir à cozinha. Quando ler a carta, subirá correndo as
escadas e entrará em meu quarto. A cama, desarrumada, ainda lhe dará
um certo alívio. Quando abrir o guarda-roupa, descerá as escadas
gritando para ele, e seguirão direto para o escritório. Ele abrirá
a gaveta onde guarda o dinheiro, e não o encontrará. Ela ficará,
de um lado para o outro, gritando o meu nome, e perguntando às
paredes o que há de errado comigo. Ele sentará na sua poltrona e
remoerá sua raiva. Gostaria de ver essa cena, mas me contento em
apenas imaginá-la. E é assim que quero que seja daqui pra frente –
o passado apenas como uma imagem distante, sem volta.
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Foto: The Road Goes On Forever, de Bob Jagendorf. Original aqui.
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