Há tempos ele não se sentia tão bem.
Saltou da cama feito um felino e se arrastou preguiçoso até a cozinha. A mãe
cantarolava Alcione enquanto amanteigava torradas dormidas e vigiava o café
sobre a única boca que ainda acendia.
Sentou-se à mesa meio acordado e
esfregou a cara. Sorriu com seus novos dentes de domingo e perguntou se ainda
havia Nescau.
Satisfeita do próprio talento em
realizar pequenos desejos, a mulher retirou o achocolatado de um esconderijo
sob a pia e misturou-o a leite em um copo grande e largo.
―
Toma ― disse ela, deslizando a bebida sobre a mesa.
―
Tu é a melhor, dona coisinha!
―
Gosto de te ver assim, faceiro como quem acabou de chegar do circo ― alegrou-se
beijando a testa do filho que nunca sorria, sempre sisudo e arredio, distante.
Pensou em perguntar a razão do contentamento, mas preferiu preservar a
intimidade do garoto.
Enquanto
comia, encarava o vazio como se admirasse o rosto de uma pessoa amada. Havia
paixão em seu semblante, algo maravilhoso de se ver refletido no rosto de um
filho, mesmo que a razão da euforia seja um mistério.
Finalmente
se tornaria homem. Todos os detalhes já estavam arranjados desde sábado à noite
quando, sorrateiro, aproveitara a ausência dos pais ― que haviam ido a um baile
no clube dos sargentos ― e invadira o quarto do casal.
―
Isso aqui vai servir pra eu não fazer feio. Ela vai adorar ― comemorou, após
revirar a gaveta do pai. Aquele domingo seria inesquecível, relembraria dele
por muitos anos.
Não
queria parecer ridículo. A oportunidade faria cair por terra os dias de
constrangimento. Imaginava como seria cada instante, a sensação mágica de
alegria, o prazer elevado ao mesmo patamar que o experimentado pelos deuses. Vacilar
não era uma opção, pois chance mais perfeita não aconteceria.
―
Os pais dela viajaram e só voltam na segunda. Ela tá sozinha! Será demais! ―
comemorou contente, lambendo o bigode de Nescau que havia se formado sobre o
buço.
Após
o café da manhã, tomou um banho demorado. Cantou todas as músicas que conhecia
e brincou de fazer penteados de espuma. Antes de desligar o chuveiro, foi
ninja, agente secreto, mago, super-herói. Escovou os dentes e penteou irritado os
cabelos sem jeito. Precisava estar apresentável, impecável. A ocasião
solicitava esmero, preparação. Vestiu a melhor roupa que tinha e mirou seu
reflexo como quem se despede da infância.
―
Hoje, eu não sou estranho. Hoje, eu não sou feio. Hoje, eu sou o cara ― repetia
o mantra enquanto, desengonçado, imitava poses de fisiculturistas. Antes de
deixar o quarto fez uma rápida oração, recolheu da cama a mochila e ganhou a
rua.
Um
repentino frenesi tomou conta de seu corpo: primeiro sentiu como se levitasse, depois
as pernas pareceram-lhe tal qual chumbo. Dois quarteirões antes de chegar à
casa da menina que lhe umedecia os sonhos, recostou-se a um poste e fumou pensativo.
Quis desistir, mas a vontade de provar que não era nenhum pobre coitado fora
mais forte. Com a ponta do tênis esmagou a guimba ainda em brasa e seguiu
caminho.
―
A partir de hoje minha vida será diferente. As garotas do colégio me
respeitarão. Vou ser o cara. O cara! ― com esse pensamento afastou os receios e
criou novo ânimo.
A
rua estava vazia. Apenas dois ou três carros estacionados rente às calçadas e
alguns cães que perseguiam uma cadela no cio. Festejou contido. Seria melhor
que ninguém o visse entrar na casa. Forçou o portão, que estava trancado, e
resolveu pular o muro.
―
Vou pegar ela de surpresa! Quero ver só a cara que vai fazer... ― riu para si
mesmo, excitado, enquanto escalava o poste e saltava para dentro do jardim. Em
pouco tempo chegou à sala. Na televisão, um comercial sobre um shake milagroso exibia mulheres
extremamente magras distraídas à borda de uma piscina.
―
Como você entrou aqui, seu retardado?! ― perguntou ela com surpresa e desprezo
antes de receber um tiro certeiro no peito.
Emerson Braga
3 comentários:
Final surpreendente hehehe não imaginava. Muito bom.
Surpreendente, pois o texto me levou aos encantos e deleites das primeiras vezes... e tomei um tiro.
Esse final é tudo. A gente volta e relê, e novamente tudo se encaixa. Ambiguidade intencional que funcionou muito bem.
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