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terça-feira, 10 de novembro de 2015

Barbie Cusquenha

Cusco

Chegar a Cusco, no Peru, é um choque, à princípio.

Assim que você sai no aeroporto, imediatamente já sabe que desembarcou em outro mundo, primeiro, pelo assédio dos taxistas que o cercam e o perseguem, quase implorando que você pegue o táxi deles, depois, por causa da falta de ar e da tontura, consequência das grandes altitudes naquelas colinas peruanas.
Logo após este impacto inicial, há as roupas típicas dos nativos, que não são vestimentas apenas para turistas ver, são o que realmente muitas pessoas utilizam em seu dia a dia, um estilo que deve ter passado de gerações a gerações, os restaurantes com comidas expostas ao ar livre e sem água corrente, e os indigentes, centenas de pedintes e crianças de rua.

Plaza de Armas de Cusco

Às vezes, você nem sabe se é um mendigo, ou apenas um morador pobre da cidade, pois muitos cusquenhos aproveitarão qualquer oportunidade para pedirem uns trocados aos gringos.
Isto até você pisar na Plaza de Armas e seus arredores imediatos, então é transportado a uma espécie de ilha de paz, tranquilidade e segurança em meio às ruínas de um povo maltratado pela História. Não me entenda mal, Cusco é linda apesar de sua pobreza, do trânsito quase caótico e da exploração turística à espreita em qualquer esquina, mas a Plaza de Armas é a hipérbole da maquiagem urbana, praticamente intocada pelos males que devem assolar outros cantos da cidade: é florida e verdejante, limpa, organizada, com policiamento e abarratoda de gringos americanos e europeus. Se o avião pousasse diretamente na Plaza de Armas, talvez você até se equivocasse, pensando que chegou à Espanha, e não no Peru, mas as cusquenhas e seus trajes típicos rapidamente o realocariam a seu devido destino.

É proibido mendigar ou perturbar os turistas na Plaza de Armas, e a polícia local marca presença dia e noite, mas, se você se afasta duas ou três quadras, já reencontra as mãos estendidas e a súplica de: "Dame, señor", ou pior "Pagame", ainda mais se você tirou foto sem autorização de alguma cusquenha e ela perceberam, então, terá de desembolsar um ou dois soles.

Justamente por causa desta tranquilidade que a Plaza de Armas se tornou nosso ponto de descanso quando o soroche, ou o mal da altitude, se tornava insuportável. Então eu e Denise, minha esposa, passávamos uma bela hora, torrando sob o sol inclemente do meio dia, observando os turistas zanzando e fotografando pela praça, os locais alimentando as pombas, e as pedintes sendo afugentadas pela polícia. Também é agradável à noite, com o friozinho inesperado que vem das montanhas e a Catedral de Cusco toda iluminada.

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Foi numa destas noites que um menino, vestido com o uniforme do colégio, aproximou-se de nós e nos ofereceu artesanato para comprarmos.
- No, gracias... - dissemos, mas ele insistiu, como todos os cusquenhos fazem.
- Compre uma Barbie Cusquenha, por favor...
- Barbie Cusquenha?
Então ele nos mostrou uma boneca vestida com trajes típicos peruanos.
- É, ela tem dois bebês, um na frente e outro nas costas - e virou a boneca, mostrando os bebês dependurados no manto, como realmente havíamos visto várias vezes em mulheres reais pela cidade.
Não queríamos artesanato algum, então repetimos a recusa.
- Vocês são italianos? - ele nos perguntou em espanhol.
- Brasileiros - respondemos e, nisto, outros meninos, também vendedores de artesanato, nos cercaram.
- Brasil! Brasil! - começaram a gritar, uma reação que já estávamos habituados em várias partes do mundo. Enquanto que em alguns países ser brasileiro pode estar associado à malandragem e prostituição, em muitos outros está associado a alegria, carnaval e futebol, sendo assim, um destes meninos recitou a escalação da seleção brasileira de sei lá quando, talvez da copa de 86. Como não entendo nada de futebol, só ri, e a criançada continuava repetindo - Brasil! Brasil! - e já haviam se esquecido de nos forçar a comprar a Barbie Cusquenha.
- Como é que vocês chegaram aqui? Foi de avião? - um deles nos perguntou.
- Sim, foi de avião. E vocês estudam? - Denise apontou para os uniformes escolares deles.
- Sim, a gente estuda! - eles responderam.
- É bom mesmo - Denise acrescentou - porque assim, um dia, vocês poderão conseguir um bom emprego e também viajar de avião.

No entanto, neste momento, sem sabermos de onde, um policial apareceu, decendo bordoada na molecada, que se espalhou e sumiu, mas o policial havia conseguido apanhar um, justamente o primeiro com quem estávamos conversando, jogou-o na grama e arrancou das mãos dele as Barbies Cusquenhas.

Eu e Denise nos levantamos para intervir, mas o policial nos mandou ficar longe.
- Eles não podem vender aqui - nos disse.
- Mas só estávamos conversando - respondemos, o que não deixava de ser verdade.
A mãe do menino, que agora chorava, chegou e implorou para o policial deixá-lo ir e ele, não querendo dar uma de brutamontes em frente a turistas, considerou que seria melhor fazer vista grossa. Não sem antes nos passar um sermão.
- Sabe o que acontece? Estas crianças não deveriam estar trabalhando. Elas vestem o uniforme de escola, mas elas ficam o dia inteiro na rua, e as mães as forçam a vender estas bonecas. Não podemos deixá-las atormentar os turistas.
Entendíamos muito bem esta situação, no Brasil não era muito diferente, dissemos ao policial, mas, mesmo assim, isto não justificava o tratamento, afinal de contas, só estávamos conversando.

Não somos à favor do trabalho infantil, nem da mendicância, mas também não podíamos simplesmente fechar os olhos para toda a pobreza daquela região: nenhuma criança no mundo trabalha se não for por pura necessidade, aliás, são bem poucas as pessoas adultas que trabalham puramente por prazer, mesmo quando não é pobre.

Após aquela noite, eu e Denise nos tornamos os informantes das crianças da Plaza de Armas. Se reparávamos que os policiais estavam pegando pesado com a molecada, nós informávamos as outras para se afastarem:
- Olha, a policia está ali! - e todas saíam correndo para um lugar protegido.

Nossa preocupação faria pouca diferença a longo prazo, partiríamos em poucos dias e aquelas crianças continuariam trabalhando, perseguidas pela polícia, vendendo bonecas para que outras crianças pudessem se divertir em algum lugar do mundo onde tudo era melhor.

A Barbie americana é linda, loira e encontrada nas lojas de brinquedos mais caras do mundo, já a versão de Cusco é baixinha, com dois filhos pra criar e são vendidas quase clandestinamente por crianças.

Até a vida das Barbies cusquenhas é mais difícil...

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