Por Henry Alfred Bugalho
O som da chuva me dava vontade de fazer xixi. Eu estava rolando na cama desde a meia-noite, inquieta após haver assistido a um filme de terror. Maldita sexta-feira treze e estas sessões intermináveis de monstros e cadáveres na TV!
Mal me segurando, desenrolei-me dos lençóis e pousei os pés nus no carpete do quarto.
Foi quando o inusitado ocorreu. Não foi como se me segurassem, ou como se me apertassem, foi apenas um toque, um resvalo no meu calcanhar, vindo de sob a cama. Tenho certeza de que não era fruto da minha imaginação, a sensação foi clara o suficiente para evitar qualquer dúvida: uma mão, de sob minha cama, havia tocado meu pé.
Gritei, saltando assim como quando, na praia, ondas geladas deslizam na altura das nossas canelas, e instintivamente olhei para a fonte do meu desespero. Nada havia.
Corri para o banheiro, pois o susto aumentou ainda mais meu apuro.
Ao voltar para o quarto, entrei sem muita coragem. Acendi a luz e, a uns dois metros de distância da cama, ajoelhei-me, encostei lateralmente a cabeça no chão e tentei divisar algo. Tinha bastante entulho embaixo, mas nada que se assemelhasse a uma mão, ou a algum dono de mão querendo me dar um susto. A hipótese de ser meu irmão estava descartada.
Rastejei até lá e, no caminho, apanhei um tênis, para dar uns safanões, caso fosse algum bicho (rato?!) desgarrado. Encontrei caixas de Barbie (bonecas aposentadas há uns três anos), uma dúzia de caixas de sapatos, às quais afastei com o bico do tênis, uma meia suja recoberta de cabelos e poeira, até uma calcinha velha havia lá embaixo.
Respirei aliviada, afinal de contas, poderia ter sido minha imaginação — era mais fácil me agarrar a uma mentira —, um vento encanado, sei lá, qualquer coisa, menos uma mão.
Apaguei a luz e, no mesmo instante em que o quarto foi tomado pelo breu, um relâmpago brilhou pela cortina, lançando uma claridade azulada, e vislumbrei talvez um rosto, cabelos brancos desgrenhados, sorriso mórbido fitando-me por debaixo da cama. Acendi mais uma vez a luz, e ri sozinha, meio apavorada, mas também me convencendo de que a visão se devia a alguma configuração bizarra de luminosidade no entulho acumulado abaixo do estrado. Quando estamos com medo é isto mesmo que acontece: quantas vezes não vemos pessoas e fantasmas nas roupas dependuradas no cabide estando as luzes apagadas, ou garras ameaçadoras nas silhuetas de galhos de árvore por entre o tecido da cortina, ou o ruído do armário, dos móveis, do vento, de passos, de sussurros?
Pura obra de nossa imaginação, pois não há nada, apenas nosso medo.
Para não ficar na completa escuridão, deixei acesa a luz dum abajur. Depois, mais confiante, apaguei-a também e tentei dormir. Mas eu estava muito nervosa, coração batendo forte, pés gelados (temia que alguém viesse puxá-los), trêmula. Encolhi-me como um feto, a chuva havia engrossado, repicando na vidraça. Tive a impressão de ouvir sons debaixo de mim, alguém se arrastando, movendo a bagunça lá embaixo.
Pensei em me levantar e acender a luz, mas não tive coragem. Preferi ficar quietinha, crente que, se eu me acalmasse, uma hora isto passaria.
Mas não foi o que aconteceu, o som aumentou, adicionado a um ranger de dentes e a um estertorar idêntico ao que ouvi de meu avô agonizando, pouco antes de ele morrer. E realmente, assim como tive certeza de que uma mão tocara meu calcanhar, não havia do que duvidar: alguém estava lá embaixo!
A situação era tão aterradora que se tornou insuportável, insustentável, ou eu ficava lá e morria de medo, ou fugia. Num pulo, voei para fora da cama e fui bater à porta de meus pais.
— O que foi, Silvana? — minha mãe a abriu, remelas nos olhos e cabelos despenteados.
— Mãe, estou com medo... — resmunguei.
— O que foi que aconteceu? — meu pai perguntou, também despertando.
— É a Sil... Acho que aconteceu alguma coisa.
— Estou com medo, pai.
— Porra, Silvana, até o Júnior já passou desta fase! Deixa a gente dormir porque amanhã eu acordo cedo!
Uma expressão de condescendência e compaixão surgiu no rosto de minha mãe, mas a ordem de papai era lei.
— Vai domir, Sil, vai — ela acariciou meus cabelos.
Mas como?!
Eu não entraria naquele quarto novamente, por isto, fui para a sala assistir TV. Estava tarde, e os únicos programas sendo transmitidos eram de compras por telefone, pastores tirando o diabo do corpo de crentes e um ou outro filme de terror, pois, apesar da sexta-feira treze ter oficialmente terminado, ainda estavam aproveitando o clima.
Meus olhos começaram a pesar e, em pouco tempo, adormeci no sofá.
Fui acordada por meu pai, na manhã de sábado, ele se preparando para ir ao trabalho.
— Dormiu aqui, Silvana? — ele me perguntou.
— Eu estava sem sono, pai. Vim assistir TV.
— E o que aconteceu ontem para você bater na nossa porta?
— Nada, bobeira, achei ter visto um rato.
Ele riu.
— Mulheres mesmo!
Passei o dia na casa da Camila; dançamos funk, rimos com uns vídeos na net, falamos dos gatinhos que estávamos ficando. Cheguei em casa tarde, apenas para comer um lanche e ir dormir, mas não consegui entrar no meu quarto, a simples memória de ontem à noite bastava para me impedir.
Voltei para sala e repeti o serão da noite anterior: TV e dormir no sofá.
E isto se repetiu por uns dez dias, para estranhamento de meus pais e irmão.
No entanto, numa das noites, adormecida na sala, tive a vaga impressão de que meu pai havia se levantado, apanhado-me nos braços e me conduzido à cama; lembro-me até de ter murmurado, sonolenta, algo como “Não, pai! Por favor, não!”
Eu entendo a atitude dele, devia pensar que meu medo era mero capricho, e que uma noite no meu quarto e na minha cama quentinha já seria suficiente para espantar os fantasmas da minha alma.
Realmente, ao ser coberta pelo edredom e pelos lençóis cheirosos, caí num sono profundo e devo até ter roncado, após tantas noites dormindo desconfortavelmente.
Mas fui acordada por ruídos e grunhidos. Não havia chuva para que eu me confundisse, além disto, havia um ligeiro tremor na cama. Alguém se arrastava lá embaixo, e parecia que as costas desta pessoa se chocavam contra o estrado. Eu estava meio lenta, com sono, mas não estava tendo pesadelo nem delírio, alguém tentava sair de sob a cama.
O medo fez com que o sono desaparecesse, mas, quando considerei a possibilidade de saltar para fora e me refugiar na sala, a visão duma mão, esquálida e branca, se erguendo pela borda do colchão, agarrando o edredom, dando suporte ao resto do corpo que haveria de aparecer, me fez mudar de idéia. Encolhi-me contra a parede, abraçando minhas próprias pernas, tremendo, pelos todos eriçados.
A segunda mão apareceu, também agarrando as cobertas e, entre o espaço das mãos, uma cabeça começou a surgir, cabelos brancos, os olhos vazios, fundos, perdidos nas órbitas, repletos de angústia e cólera, a pele desta velha criatura era ressecada e apegada aos ossos duros da face, os dentes podres e enegrecidos. A criatura erigiu a parte superior do tórax, vestia uma camisola amarelecida e ensanguentada, podia-se ver as vértebras e os ossos dos ombros saltando por entre o tecido.
Ela se arrastou até mim e, quase encostando a boca no meu nariz, exalando aquele hálito pútrido, a criatura sibilou a questão:
— Onde você estava, Silvana? Eu estava apenas esperando-a.
O colchão, os lençóis, as cobertas estavam todas espalhadas pelo quarto de Silvana quando seus pais foram até lá de manhã. A mãe de Silvana se desesperou, certa de que algum estuprador a tinha levado. O pai foi mais coerente, ligou para a polícia para dar queixa de desaparecimento, supunha que a filha adolescente devia ter conhecido algum rapaz na Internet e agora estava se aventurando pelo mundo, pensando que o amor lhes bastaria (havia assistido a uma notícia semelhante no telejornal durante a semana).
No entanto, apesar das suposições, dos cartazes espalhados pela vizinhança, da foto de Silvana na TV, do detetive particular contratado, das investigações policiais, nada foi descoberto. A moça havia simplesmente desaparecido sem deixar vestígios.
Anos se passaram e a família manteve o quarto da Silvana como um santuário intocado, para caso ela um dia retornasse.
No entanto, Júnior cresceu e sugeriram que ele ocupasse o quarto maior, que havia sido de Silvana; as coisas dela foram entulhadas na garagem.
A mudança de cômodo foi acompanhada por pesadelos nas noites subsequentes. Júnior acordava suado, ofegante, com a sensação de que algo se movia sob a cama. Mas ele era corajoso, sabia que tais coisas estavam em sua imaginação.
Até a noite de sexta-feira, dia treze, quando mãos surgiram pela borda do colchão, magras, secas, e uma jovem, irreconhecível, loira, pele e osso, olhos profundos, fétida, se ergueu.
Estendeu a mão e acariciou o rosto de Júnior, paralisado pelo medo:
— Achei que você nunca se mudaria para cá, meu irmão. Agora pode vir comigo.
E o tragou para as profundezas das sombras, entre chinelos e meias.
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