Pelos olhos de um homenino


Sou um homenino que não abre mão de manter residência fixa na infância. Meus olhos são duas polaróides prontas a captar o efêmero. Depois cuido de guardar na película das palavras o que pousou beija-flor diante dos meus olhos. A seguir, três instantâneos clicados pela minha lente de homenino.

Costumo passar duas vezes ao dia (depois do café e depois do almoço) numa banca de revistas próxima ao local de trabalho. Pois lá estou à cata de novidades – a novidade do dia foi uma edição especial da revista Superinteressante. Já de saída, reparei num garotinho de uns cinco anos perguntando à Almira, dona da revistaria, o que dava para comprar com a moeda que ele lhe entregou. A Almira respondeu, de modo afetuoso, que não dava pra nada. Presumi que o menino, uniformizado, fosse filho de alguma trabalhadora das imediações. E de trabalhadora que certamente ganhava muito pouco. O menino ficou desapontado quando ouviu da Almira que sua moeda não dava pra nada. Que menino não ficaria? Na mesma hora tirei R$ 2,00 do bolso e entreguei à Almira, não ao menino, dizendo a ela que desse ao menino o possível com aqueles R$ 2,00. O menino nada entendeu, até que a Almira lhe dissesse É o tio que tá dando. Tão inocente o menino! Tão sem jeito o homenino que sou! O menino agradeceu, ainda sem entender. O homenino saiu da banca contente de si, mesmo com a falta de jeito na aproximação com o menino. Talvez o menino tenha sido vítima de um espanto parecido com o que também tive em criança. Estava num bar da cidade vendo TV. Um cliente, do nada, resolveu oferecer picolés e sorvetes para as crianças que viam TV no bar. Era só escolher. Eu, entre o susto da generosidade e o receio de me aproveitar dela, escolhi, a custo, o mais barato dos picolés. Ah, tanta saudade de uma certa inocência – inocência que vi ainda intocada no menino da banca de revistas!

* * *

Fim de domingo banal, estou num shopping para o café da tarde. De repente vejo uma mãe tentando controlar, sem sucesso, uma criança aos berros. A criança é um garotinho de uns três anos que parecia indomável. Solta-se dos braços da mãe e continua aos berros. Apesar do incômodo com os gritos, não antipatizei com a criança. Antes me enterneci com o que aconteceu logo em seguida. O pai, que estava comprando um lanche, se aproxima, se agacha para ficar na altura do filho, abraça-o e começa a conversar. O pai quer saber o que há. A criança diz. O pai ouve com toda a atenção. E a criança já não tem mais nada da fúria de momentos antes. O pai pega a criança no colo e vai para o balcão – bem ao meu lado – esperar pelo lanche. É quando ele começa a dizer para o filho que é muito feio fazer o que ele fez; que não pode gritar com a mamãe; e muita coisa mais que não memorizei. Tudo foi dito num tom de voz calmo, afetuoso... E já não havia mais sinal da criança indócil de há pouco. Tive vontade de aplaudir aquele pai e sua perícia em pôr em prática a pedagogia do afeto, intuito que a mãe, certamente não menos afetuosa, não tinha conseguido. Fiquei encantado. O flagrante só confirmou aquilo em que sempre acreditei: só com a linguagem do afeto se consegue algo de alguém – estou falando do que se consegue de forma espontânea, porque a linguagem do poder consegue o que quer pela via do medo. Não era o caso ali – ali só havia amor. Lindo!

* * *


Por conta da homenagem a uma colega recém-aposentada, tive de ir a um shopping aonde quase nunca vou. Feita a compra, fui para a parada de ônibus. Passava pouco das 18h e lá havia três crianças uniformizadas – duas meninas e um menino. Sou péssimo de cálculo de idade, mas penso que elas tinham não mais que dez anos. Todas traziam no olhar aquela curiosidade acesa que se encanta com qualquer mínimo acontecimento. E conversavam, e riam, e brincavam... Entretidos entre si, não deixaram de perceber um professor passando pela parada. E uma das garotas disse, animada e surpresa: “Oi, professor fulano!”. Mais conversas, mais risos... De repente o garoto se lembra que só tinha um passe escolar. E pelo desenrolar da conversa, descobri que iam todos para a rodoviária e de lá pegariam outro ônibus. O bacana foi a desenvoltura do garoto ao decidir ir a pé para a rodoviária. Antes, houve toda uma combinação de onde iriam se encontrar na rodoviária, já que o garoto deixaria a mochila com as garotas. Todo animado com a aventura da caminhada (uns vinte minutos), o garoto saiu correndo a passos velozes como se corresse para uma missão muito importante – e não tive dúvidas de que fosse. Fiquei enternecido com essa cena tão rápida. E me lembrei desses versos de uma canção do Caetano: “Eu vi um menino correndo / Eu vi o tempo / Brincando ao redor do caminho daquele menino”. O meu olhar para aquele menino era um olhar para o menino que fui – e senti saudades.  

Comentários

  1. Enternecedora a ternura do seu olhar sobre o terno quotidiano.

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  2. Parabéns à Revista Samizdat por sua nova "aquisição". Gosto mito do autor Tarlei Martins Ferreira!

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  3. Meu amigo Joaquim, obrigado por me distinguir com seu terno comentário!
    Abs,
    Tarlei

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  4. Querida Angela,
    a autor Tarlei Martins agradece muito a gentileza do seu comentário. Agradece também o espaço conquistado na Revista Samizdat.
    Abs,
    Tarlei

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