Ele olha distante. A porta esta aberta. Olha através dos óculos velhos, com seus olhos cansados. Olha para aquele espaço aberto, mas enxerga além. A luz do sol invade o ambiente, mas não chega até ele. Ele esta sentado em sua cadeira, a luz do sol não os alcança. Esse sujeito gosta buscar o sol, de olhar para fora, de olhar para aquele mundo que ainda pode ser descoberto. Aquela luz é como uma esperança. A espera que algo aconteça, que as coisas voltem a ser como antigamente, que voltem ao normal. O tempo é curto. Daqui a pouco, a noite chega. Junto com o sol, a esperança se despedirá. A noite não é mais um lugar de sonhos. Há anos que não tem sonhos enquanto dorme. Apenas pesadelos, medos e suas angustias lhe visitam a noite.
Talvez seja por isso que acorda cedo. Entre quatro horas e quatro e meia, ele sai da cama. Parece querer esconder-se na penumbra da madrugada, mas não é nada disso. O que deseja mesmo é prolongar os dias, prolongar o brilho do sol. Ou simplesmente lembrar de quando tudo era do jeito dele. De quando, acordava as quatro da madrugada, disposto, para trabalhar. ‘Levantar cedo é sinal de saúde, sinal de força’ repete para si mesmo todos os dias. Além disso, é durante o dia que pode sonhar e revisitar seus sonhos sem os temores da noite.
Ele tem 65 anos e tudo aconteceu tão depressa. Hoje, entende quando seu pai lhe dizia que a vida passava rápido. Só lamenta não ter percebido antes. Demorou tanto para entender que a vida se vive, enquanto acontece, e não quando o dia chegar. Não há dia para se viver, não há dia para ser feliz.
Há dez anos, sofreu um derrame. Esta lúcido, mas seu corpo não é o mesmo. Escuta pouco, fala bem e se movimenta com dificuldades. O derrame deixou suas marcas na mão e na perna esquerda, as quais ele não consegue comandá-las. Mas as cicatrizes maiores estão onde ninguém pode vê-las. Todo dia é uma vitória: todo dia precisa provar para si e para os outros que ainda é gente, que ainda é capaz de ser independente, mesmo sabendo que não é. Para algumas coisas é tão dependente quanto a sua esposa, que morreu há 15 anos.
Ela sofria. Ele a via sofrendo, gritando de dores. Ele sofria por ser incapaz de fazer qualquer coisa para aliviar a dor dela. Ele a amava e esse sentimento aumentava o sofrimento, aumenta a dor de ambos. No final ela não conseguia se alimentar, se vestir ou se banhar sozinha. Tiveram que contratar alguém para alimentá-la, vesti-la e banhá-la. Às vezes, ele a banhava, lhe alimentava e lhe vestia, mas não gostava de fazer essas coisas. Não gostava de ver nela aquele olhar. Um olhar de derrota, um olhar de vergonha. Um olhar de algo mais que antes não conseguia entender. Ela tinha perdido tudo, apenas vivia para entender e perceber tudo que tinha perdido. Mas não se tratava apenas de perda. Ele se pergunta se ficará também como ela, dependente dos outros, dependente de tudo.
Ele gosta mesmo é de sentar-se perto da porta da casa. Aquela porta tão diferente de quando a esposa, seu grande amor, ainda era viva. Ela não vira as últimas mudanças na casa. Ele não queria mudar, mas os filhos insistiram. Ele aceitou. ‘Mas para que, todas essas mudanças?’. Diziam que era para ter mais conforto na vida. Ele não queria mais conforto, ele queria ter novamente aqueles domingos, quando fazia churrasco e bebia com a esposa e com os filhos. Naquele tempo, quando a casa não tinha churrasqueira. Faziam o churrasco com algumas pilhas de tijolos para posicionar os espetos. Naquela tempo, a familia não bebia cerveja. Não tinham dinheiro. Cerveja era muito luxo, bebiam caipira. A cachaça era mais barata e podiam misturá-la com água. Os limões eles pegavam da árvore do vizinho. Não tinham nada, mas tinham um ao outro. Eles tinha tudo.
Agora, ele já não tinha mais ninguém. Vivia com uma pessoa estranha para que arrumasse a casa e cuidasse de algumas coisas para ele. Ninguém mais aparecia. Ele aprenderá a ser só, a viver naquele mundo de lembranças. A sonhar acordado. Olhar o sol lhe dá forças, parece que enxerga mais na claridade. Enxerga a luz. E lembra de quando fazia sol e ele se divertia. Não tem muitas lembranças dos filhos, apenas dos churrascos de domingo. Eles tiveram três meninos. Nunca soubera direito como se relacionar com os filhos. A mãe deles é que cuidava da educação. Ela sempre cuidara de tudo e de todos. E no final, não tinha ninguém para cuidar dela.
Às vezes parece que é mais dor para ele viver agora, do que era para ela, quando estava dependente. Talvez o olhar dela não significasse apenas vergonha e derrota, talvez fosse também de gratitude por ele estar ao lado dela. E talvez, quem sabe, o sofrimento dela era resistência para ficar um pouco mais ao lado daquele que ela amara tanto; talvez ela quisesse mostrar-lhe que não estava derrotada, estava, de certa maneira, feliz, apesar do sofrimento. Ela tinha o grande amor da sua vida ao seu lado. Quando tem essas lembranças, ele quer chorar. Se ninguém esta olhando, ele deixa uma ou outra lágrima escorrer pelo rosto e lembra-se do seu amor sem culpa. Se alguém esta presente, ele segura o choro e coça o olho.
Os dias de sol são os dias bons. Os dias frios são nublados e os dias de chuva não tem sol. Não há esperança que alguém venha lhe visitar ou que ele possa tentar caminhar um pouco pelo rua. Tudo fica estranho e é como se a morte estivesse próxima. Sente mais frio agora do que quando era novo. Nesses dias as coisas são piores. Nesses dias ele sente mais ódio e raiva do que nos outros. 'Por que se faz frio se é verão?' Não entende as mudanças no mundo, as mudanças na vida. 'Por que as coisas tinham que mudar? Éramos tão felizes'. Ele quer chorar, mas o empregado esta por perto. ‘Homem não chora’. Então se recolhe no quarto.
No quarto, deixa rolar uma ou duas lágrimas. Algumas pelo sofrimento, outras por vergonha, de ser homem e estar chorando. Ele está mais só do que nunca agora, está em seu mundo, com suas angustias e seus fantasmas. Ele não quer ser um estorvo para ninguém e aquele choro vem novamente. E sente mais vergonha por querer chorar. Não consegue entender como as coisas mudaram tanto, em tão pouco tempo. Ele sente falta dos filhos, mas não liga para eles. Não quer atrapalhar. Ele não entende por que eles lhe abandonaram. As vezes fica meses sem saber notícias deles. 'É triste ficar velho e perceber que ninguém se importa consigo'. 'é triste ficar velho e sozinho'. Para minimizar a dor, ele abre a janela e olha para o sol. Então ele se busca na memória aqueles domingos. Lembra do seu amor, lembra de sua juventude.
Ele tinha força, ele era forte, mas hoje não, mal consegue levantar-se da cadeira. Nos dias bons, caminha como um tartaruga, mas sem a sua sabedoria; nos outros arrasta-se como uma lesma. Mas no passado ele corria sob duas rodas, mais do que esse jovens de hoje correm. Relembra coisas, como naquela vez, em que percorreu 100Km de bicicleta apenas para visitar a casa de uma menina. Ele amava aquela moça. Conta até hoje essa história para quem quiser escutar, embora ninguém queira escutá-lo. Ele voava de uma cidade para outro, apenas para ver a sua amada. Não tinha essas modernidades de celulares e computadores. Ele gostava do jeito que o mundo era. Não gosta do jeito que o mundo é. É tudo tão triste hoje. Não gosta do jeito como as pessoas são sós. Não gosta como ele é sozinho.
Esperava uma outra vida, esperava, na aposentadoria viajar com a esposa, mas agora não tem esposa e nem força para viajar. Todos os sonhos guardados em uma gaveta do coração. E já é tarde, tarde demais para sonhos. Na rua o sol se põem, seu brilho se esconde com uma rapidez. É a noite que se aproxima. E não há sonhos na noite.
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