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terça-feira, 22 de outubro de 2013

A revolta de Maria

Qualquer semelhança com um clássico do cinema não será coincidência.


Maria é uma mulher real, com dilemas comuns e sonhos, um punhado de sonhos, simples, fáceis de concretizar. Maria quer o básico: ser feliz. Maria quer o básico através da tríade convencional: casar, ter filhos e estabilidade (financeira, leia-se). Em momento de ousadia onírica, Maria detalhou para si perspectivas: queria casar com um homem moreno-forte-bonito, ter dois filhos, um casal, o menino primeiro, e uma casa arejada, com suíte e churrasqueira, um carro de quatro portas, e grana suficiente para viajar para Camboriú no mínimo uma vez por ano, a renovar lua de mel. Maria também queria parecer com atrizes de novela: ora ter cabelo liso, longo e louro, ora crespo graúdo, castanho mel e Chanel médio, ora usar dourado e pedrarias, ora usar prateado e pingentes solitários, e ser magra. Sempre. Não precisava ser, assim, muuuuito magra, só o suficiente para entrar no jeans 36 da adolescência, que terminou faz pouco.

Digamos que Maria tenha conseguido realizar em parte o punhado de sonhos simples que tinha e segue tendo. Maria namorou, noivou e casou com Charleson, que é demais da conta: tão moreno que no verão dá para desenhar à unha em sua pele bronzeada, tão forte que concentra energia na região do abdome e tão bonito que sobra formosura nas fotos do casal. Pois Charleson é comerciante, autônomo, de sucesso. Vende por sua conta lenços, meias de lã, cedês e devedês copiados, calculadoras, relógios de pulso digitais, bolsas, carteiras, canetas, baralhos e mais um monte de coisas importadas. O dinheiro chega. A renda de Charleson paga o essencial da família e os luxos da esposa, normalmente na lojinha de acessórios preço-único. E eles já têm o primeiro filho, o Ricardinho, com três anos de pura traquinagem, cheio de saúde e gosto por futebol.

Maria preferiu dedicar-se à casa, ao marido e ao filho, trabalhando diária e incansavelmente pela concretização do sonho simples de ser feliz e estava praticamente lá. A irmã para Ricardinho já está encomendada para daqui cinco anos, os passeios para o Rio de Janeiro e a Bahia, além de Camboriú no fim do ano estão marcados, para onde vão no carro próprio zero quilômetros, não falta nada, pensa. Maria enumera, faz listas, risca itens e seu cálculo não fecha. Falta ela. Obesa, cabelos oleosos com três tons de cor, chinelo e meia, meia barra de chocolate na mão esquerda, um cesto de roupas para estender na corda, outro para dobrar e guardar nos armários.

Maria investe em si, mira e atira, mas erra a pontaria: escolhe o exemplo feminino a seguir na novela das oito, assiste Bem Estar e o quadro Medida Certa do Fantástico para aprender a lidar com as estrias, as gorduras localizadas, os joanetes e o cocô, consome livros de maquiagem como se a decoração do rosto fosse acontecer pela leitura, compra roupas na seção teen e estoca alimentos integrais na promessa de voltar ao peso ideal do corpo antigo. Faz dieta da proteína, do carboidrato, do iogurte, da sopa, do sol e da lua e se flagra comendo pão com mortadela de madrugada, escondida do mundo, em quem bota a culpa quando não consegue perseverar.

Maria é uma perseguida. Todo mundo acha que ela é gorda porque tem bochechas no quadril, acha que ela é feia porque tem o nariz de batata e cachos indefinidos, acha que ela não é boa mãe porque deixa o Ricardinho ver a Barbie na tevê, acha que ela é uma infeliz porque não tem profissão. Só falta a Maria parecer com a protagonista da novela para a felicidade estar completa, mas para o mundo todo, não. E quando o mundo todo diz que Maria não consegue, não tem, não pode, não é, aí é que ela se enfurece e se entristece para valer. Então Maria come. Porque comer alivia, acalma, devolve Maria à Maria.

Foi em meio a mais um intenso período de restrição alimentar que a revolta de Maria se deu. Ventava como nunca na varanda, naquele entardecer, fazendo os cachos indefinidos de Maria soltarem do coque frouxo e enredarem-se uns nos outros, misturados aos restos de capim cortados por Charleson, pela manhã. Algo subindo por dentro aquecia o ventre de Maria, que rumava para a horta familiar, cheia de alfaces, couves e rúculas verdinhas. Não era mais a qualquer a quem todo mundo inquiria, a Maria era um gigante em batalha, uma lança em curso, um rifle pronto ao disparo. Estava a dois passos do cercado quando decidira, por fim, tomar na mão a própria vida e mudar de rumo, mudar de sonho, mudar seu mundo. Maria atirou-se de joelhos sobre as couves e arrancou molho por molho, puxou salsinhas, cenouras, rabanetes e nabos pelos talos. O quente da barriga saiu pela boca, num urro ardido e prolongado:

- Por Deus eu juro! Por Deus, eu juro, eles não vão acabar comigo e quando terminar, jamais sentirei fome de novo. Nem eu nem minha família. Mesmo tendo que matar, mentir, roubar ou trair, eu juro por Deus, jamais sentirei fome novamente!

Suja de terra, semblante fechado, Maria juntou o resultado da colheita intempestiva e foi para a cozinha. Haveria um banquete – de saladas – para o jantar.


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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
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