por Carlos Alberto Barros
Haverá um tempo em que os seres humanos quererão extravasar seus sentidos, seus sentimentos, seu amor, seu sexo. Uma mulher triste se isolará em sua casa, se sentirá solitária, amargurada, manterá relações virtuais para suprir suas carências, quererá satisfazer seus instintos e passará a copular com máquinas. Nessas cópulas biocibernéticas, será fecundada e gerará uma criança à qual dará o nome de Lucas e que, posteriormente, será conhecida como o Menino Binário.
O parto de Lucas terá grandes complicações. Seu corpo se enroscará no cordão umbilical e dificultará sua saída. Os médicos suarão por horas, até conseguirem retirá-lo por completo. Só aí, perceberão que a dificuldade se deu por conta de uma das mãos do bebê. E dirão mãos por não saberem como chamar as formas incomuns apresentadas nas extremidades dos braços. Espantados, verão, ligado ao pulso direito do recém-nascido, o número 1; e ao pulso esquerdo, o número 0.
A mãe do menino prometerá a si mesma nunca permitir que ele sofra preconceito e o criará como qualquer outra criança. Ela o levará para ser batizado e o sacerdote congregará sobre a sacralidade de seus números. Dirá que as mãos de Lucas, unidas em oração, mostrarão sempre o quanto ele é 10, assim como o tão bom e poderoso Deus.
O garoto crescerá e freqüentará a escola. Sofrerá zombaria dos colegas, ficará triste, se sentirá diferente, chorará. Sua mãe dirá o quanto ele é especial, o quanto o ama, que será sempre seu filho nota 10. Dirá que não deve ter vergonha de si mesmo e nem permitir que o maltratem. A professora de Lucas será alertada sobre as brincadeiras de mau gosto dos colegas, dirá o quanto devemos respeitar o próximo, que somos todos iguais perante Deus e que não é certo caçoar dos outros. Os alunos baixarão as cabeças, fingirão arrependimento. Depois, assistirão aula de História das Máquinas e aprenderão que os antigos computadores funcionavam apenas com os numerais 0 e 1, através de um sistema denominado código binário. E não demorarão a usar a isso como novo motivo de zombarias.
Lucas será chamado de Menino Binário, ficará chateado e quererá deixar a escola. Sua mãe insistirá para que permaneça, falará sobre a importância do conhecimento, de um grande futuro. Dirá que não importa que ele não consiga segurar um lápis, que o que vale é a inteligência. Ele, então, continuará a estudar e logo arrumará briga com um dos colegas. Usará seu 1 para ferir o oponente, vencerá a briga e os outros meninos levantarão seu braço, e dirão que o número já fala tudo. Chamarão Lucas de Menino Binário, o número 1. E ele começará a gostar de seu apelido e abrirá um sorriso sempre que ouvir alguém o pronunciando. A vida na escola será menos triste e todos, mais por dó que por vontade, passarão a lhe demonstrar carinho.
Quando chegar à adolescência, o Menino Binário se mostrará incomodado com seu apelido e dirá a todos que prefere que o chamem de Jovem Binário, mas verá que soará estranho, sem identidade e que será melhor deixar como antes. E ficará muito feliz quando uma garota disser que acha o nome bonitinho. Perguntará se ela não se importa com aquelas diferenças em seu corpo. Ela responderá que acha que se pode fazer muitas coisas interessantes com aqueles números. Ele enrubescerá e fingirá não entender o comentário. Os dois começarão a namorar e as pessoas acharão a relação estranha. A família da moça dirá que há tantos rapazes normais por aí. Outros irão desaprovar, criticar e fazer comentários maldosos. Dirão que ela é tão bonita, que deve arrumar coisa melhor. A moça se sentirá pressionada, começará a refletir e verá defeitos naqueles números 1 e 0. O Menino Binário não entenderá as mudanças na garota e ela terminará o namoro, dizendo que não dá mais.
A juventude de Lucas se seguirá solitária. Chegará o ponto de pensar em suicídio. Irá até uma estação de trens e aguardará. No momento certo, descerá na via, colocará os pulsos sobre o trilho e esperará para ter seus números decepados. Ouvirá um forte som de freios, verá os seguranças da estação chegarem, será preso. Sua mãe será informada do ocorrido e cairá em lágrimas, discutirá com o Menino, dirá que não precisa disso e que o ama. Ele a condenará, dirá que a odeia por colocá-lo no mundo e fugirá para longe.
O Menino Binário vagará até encontrar uma jovem. Perguntará seu nome e ela dirá que é Silvia, mas que pode chamá-la de Telemoça. Será questionada do porquê, e mostrará que no lugar de sua barriga há uma tela de TV que mostra as imagens que ela desejar. Ele achará interessante, dirá que se chama Lucas, mais conhecido como Menino Binário, e explicará o motivo de seu nome. Os dois se tornarão amigos e ela lhe revelará que, além deles, há muitos outros. Dirá que são conhecidos como Virtualis e que o levará para conhecê-los.
Lucas e Silvia chegarão a um local onde haverá um grande grupo de pessoas. À frente de todos, terá um homem discursando através de um auto-falante que possui no lugar da boca. Ouvirão o inflamado discurso, que falará da luta pelos direitos dos Virtualis. O homem perguntará quem está ali pela primeira vez e o Menino Binário se manifestará. Terá o motivo de sua presença questionado e, então, mostrará seus números a todos. A assembléia, em uníssono, exclamará o quanto Lucas é perfeito e ele, de tão feliz, erguerá bem alto seu número 1, assim como na briga da escola. Também ouvirá uma longa salva de palmas e verá o sorriso de satisfação de Silvia, sentada ao seu lado.
Os anos irão avançar e os Virtualis aumentarão. Muitas pessoas dirão que são aberrações; outras, que são seres humanos como todos. Haverá guerras, mortes. Lucas se tornará homem, entenderá a injustiça sofrida por seus semelhantes, se juntará a grupos revolucionários e lutará por seus direitos.
A nova vida trará grandes amigos: Daniel, o Dedos-de-antena; Funes, o Memorioso; Glória, a Mulher-remota. Numa bela noite, Lucas irá beber com eles e a Telemoça. Ficará alcoolizado e brigará com um zombador de seus números. Anunciará sua vitória erguendo o braço direito e, olhando para Silvia, erguerá também o esquerdo, juntará os dois e dirá para todos ouvirem que ela é uma mulher nota 10, que sempre a amará e que lhe propõe casamento. Ela ficará feliz e irá beijá-lo. Lucas a olhará com expressão de volúpia e introduzirá o número 1 no 0. A Telemoça sentirá vergonha, sorrirá e dirá que ele é um pervertido. E os amigos darão longas gargalhadas de aprovação.
Lucas abandonará o nome de menino e começará a ser chamado de Homem Binário. Passará a se sentir mais forte e entenderá que a luta contra o preconceito deverá sempre continuar. Verá políticos pedindo seu voto e falando sobre igualdade. Presenciará a criação do Estatuto do Virtuali e viverá experiências comprovando a ineficácia dessa lei. Ficará revoltado e fará discursos fervorosos. Dirá que os Virtualis são injustiçados, que estão sendo mortos sem ninguém fazer nada, que precisam de um deles entre os governantes. Todos aplaudirão e se sentirão capazes. Unidos, criarão o Partido VV (Virtualis Vivos) e iniciarão uma campanha para eleger o Homem Binário. Planejarão tudo: primeiro, prefeito; depois, governador; por fim, presidente. Lucas governará o país e nenhum Virtuali será mais menosprezado. A campanha seguirá firme e as pessoas sensíveis se comoverão. Lágrimas emocionadas cairão quando o Homem Binário erguer seus braços, formando o número 10 de sua candidatura, e aparecer na tela do ventre de sua esposa, Silvia.
Muitos serão os adeptos da Partido VV e também muitos serão os desafetos. Políticos de outras siglas ficarão incomodados com a aceitação do Homem Binário, se sentirão ameaçados, perceberão que ele é uma perigosa influência para a população e quererão eliminá-lo. Eles contratarão homens que farão Lucas e seus amigos mais próximos caírem em uma armadilha. Daniel terá seus dedos-de-antena entortados, Funes terá seu cérebro arrancado e sua memória extinta, Glória terá seus botões de controle remoto cortados. Lucas verá todos serem mortos, chamará os carrascos de covardes, dirá que a hora deles chegará. Os homens o espancarão, usarão um machado para arrancar seus números, mandarão comer seus membros decepados. O Homem Binário amaldiçoará o mundo, sentirá medo da morte, tentará comer, sentirá náuseas, vomitará, chorará, ouvirá injúrias, será humilhado, lembrará de sua mãe, de sua esposa, de sua briga na escola, de quando foi chamado pela primeira vez de Menino Binário. Um dos homens cortará seu pescoço e Lucas morrerá. Seu corpo nunca mais será visto. A Telemoça se desesperará. Os Virtualis se revoltarão, alegarão perseguição política, assassinato. O caso nunca será resolvido.
Anos e mais anos passarão e a lembrança de Lucas se perderá no tempo. Haverá aqueles que debocharão, que dirão que tudo foi inventado. Os fatos se tornarão lenda e a história do Menino Binário será apenas mais uma que muitos sentirão prazer em contar.
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