Volmar Camargo Junior
Era o ano de 1930 e eu estava de férias. A conversa dos adultos à noite rendeu-me um passeio pela manhã. Meu conhecimento sobre bancos era que de tempos em tempos minha mãe ia até o mais próximo de casa e lá deixava algum dinheiro. Uma quantidade enorme de pessoas aglomerava-se à porta da agência aonde íamos, cuja porta encontrava-se fechada. Em muitas esquinas do centro da cidade havia grupos assim, ensandecidos. No final da tarde, depois de permitirem a entrada, e terminada a balbúrdia, as pessoas voltavam para suas casas com montinhos maiores ou menores. O que mamãe enfiou na bolsa logo após dizer “Boa Tarde” não era grande. Foi a primeira vez que vi tanto dinheiro junto.
A fábrica onde meu pai trabalhava fazia trilhos para trens, ou peças para trens, ou as duas coisas. Encontramo-nos com ele a poucos metros de casa. Estava chorando, em silêncio como fazem os homens. Não era comum vê-lo assim. O patrão gostava do serviço dele — era polonês, como nós — e ofereceu-lhe a oportunidade de continuar no trabalho, com salário menor. Estava triste porque os melhores amigos não receberam a mesma proposta. Chegamos. Papai foi para o quarto, mamãe para a cozinha, e o dinheiro foi em um embrulho de papel para dentro da lata de farinha. Eu fui para a sala de estar, pôr tudo em ordem para receber alguém que há muito tempo não via.
A casa ficou quieta, mas não silenciosa, porque a quietude é diferente do silêncio. O outono chegava e o vento corria sobre os telhados fazendo os beirais assoviarem. A porta da frente abriu-se, esparramando o cisco que eu acabara de juntar. Não vi ninguém. Corri até a entrada e, fazendo uma mesura, disse ao recém-chegado invisível “Queira entrar, por favor. Sinta-se em sua própria casa.” Ri sozinha, e fechei-a. Nem o vento nem a sujeira que tive de varrer outra vez abalaram meu bom-humor.
A família reuniu-se às seis da tarde para o jantar. Estávamos felizes porque Stanislaw, meu irmão, voltou depois de um longo tempo. Mamãe fez pierogi, uma travessa cheia de onde tentei capturar um. Recebi uma reprimenda da tia Heike, madrinha de Stan: “Tire a mão! Esses são só dele.” Não havia muita coisa — na verdade só czernina, que eu não gostava, mas nunca disse isso a ninguém. A mesa foi decorada, quase tão bonita quanto a do Natal. Sentei-me na cadeira ao seu lado. Senti o cheiro da loção de barba, e da goma que usaram para passar sua camisa. Olhou uma ou duas vezes para mim durante o jantar, e sorriu. Dividimos o prato de pierogi.
Stanislaw contou que tinha uma noiva e não demoraria a apresentá-la a nós. Ao ouvir o nome, era de origem alemã, senti as solas dos meus pés formigarem, um frio percorrer minha espinha, e os cabelos atrás da nuca eriçarem como os de um gato. Eu a odiei, mesmo sem nunca tê-la visto. Aleguei cansaço e fui para meu quarto. Não vi as visitas irem embora. Meu irmão saiu logo depois, em seu próprio carro – ou era do exército, nem sei. Chorei até pegar no sono.
Acordei no meio da noite. Mãe e pai dormiam. Silêncio. A luz pálida dos postes entrava pelos vãos da janela. Percebi alguém observando pela cortina do quarto. Mamãe costumava deixá-la aberta antes de ir-se deitar. Tive medo. Todos sabem, especialmente as crianças sabem quando a mãe os espia. Não era ela. No corredor, na sala, na cozinha; alguém deslizava pela casa. O quanto pude, tentei nem respirar.
Barulho. Metal, louça, vidro, madeira, o som de tudo o que havia. As luzes acenderam e todo mundo pulou da cama, inclusive eu — graças a Deus alguém inventou a luz para espantar o que nos amedronta. Pai de pijamas e com uma espingarda velha correu até a cozinha. Todos corremos. A janela estava aberta. Pegadas enlameadas e farinha por todo o soalho. A lata vazia. O pacotinho não estava lá.
Passado o susto, papai chamou a polícia. Depois daquela noite, as coisas só pioraram.
A fábrica de peças de trem — ou de trilhos — faliu. O banco da esquina e quase todos os da cidade fecharam as portas, dessa vez para sempre. Ouvimos dizer que o governo ia ajudar, formavam-se filas aqui e ali por causa disso. Havia quem o fizesse até para ganhar comida. Pessoas falavam mal do Presidente Hoover. Outras, falavam muito mal. Meu irmão foi dispensado da corporação. A família da noiva chamou-o para voltar com eles para a Europa. Quando a moça mandou-lhe uma carta dizendo que estava esperando um bebê, ele sofreu muito, queria morrer. Os velhos entenderam a situação e mandaram que fosse com ela. Eles entenderam; eu não.
Tio Francis era dono de uma oficina mecânica. Chamou o cunhado, meu pai, para ajudá-lo, mas teríamos de nos mudar. A única coisa que ainda possuíamos era a casa. Veio buscar a gente e os móveis com um caminhão. Papai vendeu-a para um judeu. Colocamos tudo na carroceria. O que levamos resumiu-se às roupas e ao que tinha algum valor sentimental. O resto, louça, cristais, talheres, os móveis de madeira, até as camas, tudo entrou no negócio. Mas havia uma coisa que não foi, nem poderia ter sido vendida.
Subíamos na cabina do caminhão – eu teria de ir sentada no colo do pai; estava muito frio para qualquer um viajar na carroceria. Lembrei em voz alta “As fotos!”. As fotografias eram a única recordação que eu guardava de Stanlislaw. Do meu Stanislaw. Não aquele, que escolheu uma mulher cuja voz ninguém da família ouvira. Nem esperei autorização. Voltei correndo. O novo dono conversava com um vizinho, e a porta estava destrancada.
Por hábito, bati os pés no capacho e entrei. O vento estava forte, e a casa, quieta. Tive a sensação de já ter vivido exatamente aquele evento. Só muito depois soube que isso tem até nome: déjà vu. Diante do corredor, hesitei. Não era só a lembrança das coisas na mesma ordem, mas tive outra vez a impressão de estar sendo vigiada. As janelas estavam fechadas. Escuro. O álbum de fotos ficava em cima do meu roupeiro. Todos os corredores são medonhos a pouca luz, e aquele não era diferente. Teria de atravessá-lo para chegar ao quarto. Corri, abri a cortina, e rapidamente, mesmo na penumbra, espichei a destra, peguei a encadernação de capa de couro marrom, enfiei-a debaixo do braço e tomei a direção da saída. Havia alguém no quarto.
Não consegui gritar. Minhas canelas congelaram, os calcanhares pregaram no soalho e meus olhos arderam até doer por não conseguirem piscar. Alguém estava ali, diante de mim. O mesmo mal-estar da noite do ladrão. Estáticas, eu e a outra pessoa. Pouco pude ver. Era mulher. Velha, miúda, fiapos de cabelos pendendo sobre os ombros e o peito. Andrajos. Cheiro de mofo e de coisas guardadas há muito tempo preencheu o quarto.
Consegui coragem, não sei de onde, dessas que só as crianças têm.
“Quem é a senhora?”
“Não se lembra de mim?”
“Juro que não.”
“Há tempos, cheguei à sua porta.”
“Não a vi, sinto muito.”
“Não. Não viu. Mas convidou-me para entrar. Disse bem assim ‘Queira entrar, por favor. Sinta-se em sua própria casa’. Como poderia eu recusar um convite desses?”
Calei. Estava pasma, de frio e de medo. Eu dei-lhe a passagem. Uma pessoa morta? Um fantasma? Um demônio? Não conseguia distinguir se era ou não alguém conhecido. Só o que via eram seus cabelos atirados, brancos e compridos como os galhos de um salgueiro ressecado. Ela fez um lento movimento com a mão, espalmando-a para mim.
“Ainda não nos apresentamos” disse. “Como se chama, mocinha?”
“Leda”
“Bonito nome. É latim. Significa ‘alegre’. Do latim também é o meu”.
Curvou-se, imitando a mesura que eu havia feito à porta
“Meu nome é Miséria.”
E sumiu. Decididamente, não se foi. Simplesmente sumiu. Nunca mais a vi, mas percebia sua presença, cada vez mais intensa; seu cheiro de mofo e seus cabelos secos tocavam-me todos os dias. Viajou conosco. Ficou conosco. Viveu com minha família por anos. Ao mesmo tempo, passou a viver em outras casas. Em todas as casas. Não bateu mais nas portas, nem esperou que uma criança gentil a convidasse. Parece-me que faltou aos homens coragem de pedir-lhe “Senhora, tenha a bondade de se retirar”.
0 comentários:
Postar um comentário