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sexta-feira, 13 de junho de 2008

O autor dos passos

I

Honra! Era a primeira vez que participava no concurso literário do grupo de editoras “Teya” e o seu romance “Os olhos cansados do escurecer” arrebatara logo o primeiro prémio.

- A capacidade para criar uma ambientação rica e poética e mudar de repente para uma narrativa em ritmo rápido e inquietante, foi isso o que mais nos cativou – disse Carlos Reis, o célebre romancista ribatejano, presidente do júri do concurso. Tomou entre mãos o livro de capa escura e abrindo na página previamente marcada, leu alto, para todos ouvirem

“Olhos fundos” fechou a sete chaves a porta do pequeno apartamento. Miguel não aparecera e, de repente, ela sentia-se cansada, insegura, “só de vida”. Na sala moderna e pouco convencional, a janela era grande, de sacada, quase todo o espaço de uma parede. Estava entreaberta. Se espreitássemos por ela, poderíamos observar lá bem em baixo e ao longe as mil luzinhas e mais mil cores que assinalavam o bulício do trânsito sonâmbulo, um enveredar de forma indiferente por repetidos e misteriosos caminhos.

“Olhos fundos” despiu a roupa devagar e brincou por breves momentos com o reflexo do seu próprio corpo moreno belo e esguio. Vestiu o robe branco e puxou do cigarro. Ficou ali absorta, quase em tempo suspenso, seguindo pensamentos erráticos que eram como adornos de fumaça do “Português Suave”. Seria o último cigarro da sua pobre vida.

Pairou por ali um silêncio breve ao fim do qual a plateia aplaudiu de pronto, rendida. Seguiram-se o beberete e as vendas dos exemplares autografados. Ao chegar o fim da tarde, disse para Mariana e aos outros “Estou cansado. Acho que vou para casa tomar um bom banho, comer qualquer coisa e dormir. Se não se importarem, adiamos a comemoração para amanhã”.

Pegou na sacola de couro onde guardava os dois únicos exemplares não vendidos. Desfez o nó da gravata e guardou-a no bolso do casaco.

“Queres que te leve até lá?” Inquiriu Mariana, deixando por momentos o molhe de pessoas.

“Se não te faz diferença…” Respondeu.

Três quartos hora depois e estavam à porta de casa dele. Despediu-se com um beijo rápido e pouco intenso – um “selinho” - e subiu as escadas a correr. Ao chegar ao átrio do terceiro andar, deu com a porta escancarada e parou, colocando-se de sobreaviso. Chegado ao “hall”, não viu vivalma e a arrumação impecável não permitia inferir qualquer presença estranha.

Já estava a meio do corredor quando os sentiu, som quase imperceptível de passos rápidos atrás de si. Virou-se para encarar o intruso e algo lhe bateu com força mesmo no cimo da nuca. Ao mergulhar na escuridão, teve ainda tempo para ouvir a gargalhada. Um som familiar, que conhecia perfeitamente, apesar de estar a ouvi-lo pela primeira vez.

II

Passam uns minutos da meia-noite. No bairro periférico da capital, o grupo apeia-se do comboio. Após as breves despedidas, a mulher inicia o trajecto que a levará até à porta de casa. Não se vê vivalma na rua estreita e escura. O candeeiro de latão antigo e sujo está ainda longe, perto do cruzamento. É a única fonte de luz.

Após alguns metros percorridos, espreita por cima do ombro verificando se algum indesejado a seguiu até aquelas paragens. Nada. Apenas outro comboio que chega. Ouve-se o apito a marcar a partida e ela ainda vê de relance fugirem os rectângulos luminosos que são as janelas das várias carruagens.

Dispõe-se a continuar quando ouve o som dos passos. Estão mesmo atrás de si. Falta-lhe o tempo para escapar. Enquanto a mão forte envolve a face tapando a boca, a outra mão faz deslizar a lâmina aguçada. O golpe é dado de baixo para cima com força e precisão cirúrgica. O metal frio entra pelo baixo-ventre, abrindo rapidamente caminho e rasgando, deixando atrás de si as vísceras desfeitas, soltas e desamparadas. A torrente de sangue jorra livremente naquela mesma fracção de segundo em que ela entra em choque. A mulher nunca saberá ao certo o que aconteceu.

O homem é alto e tem o cabelo rapado e olhos azuis, frios. No seu corpo musculoso, o peito exibe a tatuagem de um escorpião. Em silêncio, agacha-se sobre o cadáver e pesquisa a carteira procurando algo. Decerto não tarda a encontrar o que procura, pois a face sorri quando abandona o local apressadamente.

III

Acorda a meio da noite e a cabeça dói, pesa-lhe. O candeeiro aceso a seu lado é a única fonte de luz. As imagens que surgem uma por uma, desfocadas e descoloridas mostram-lhe que está no quarto das visitas, amarrado à cadeira. Atrás de si, a voz forte e grave, dona dos passos diz

“Como estás, escritor? A cabecinha dói muito?”

Os passos fazem-se ouvir novamente. Está agora bem à sua frente, pode ver-lhe claramente a tatuagem. Sabe a resposta mas, para ganhar tempo, pergunta

“Porquê? Porquê tudo isto? Se ao menos soubesse…”

“Se soubesses o quê?” responde-lhe a voz

“Se soubesse… nunca teria criado essa personagem, nunca, NUNCA TE TERIA ESCRITO!”

Obtém como resposta uma gargalhada forte, bem sonora. Então, o outro pega no livro e encara-o. Após uns segundos, responde

“Julgas que me criaste? Na verdade, sei tudo sobre ti, sobre o que eras dois meses atrás, quando terminei de escrever. A única coisa que não conhecia era esta morada, a toca onde te escondeste. Mas esse foi um problema que resolvi facilmente…”

A boca do escritor que julgava saber tudo abre-se na expressão de espanto

“Tu, tu… tu escreves?”

Então, o captor, em vez de responder, abriu o livro e começou a leitura

Era fim de tarde, uma tarde chuvosa e triste quando Nuno Marques da Silva, escritor amador, leva o copo de uísque pela segunda vez à boca e pensa se não será melhor desistir daquele projecto. Entre o vidro e ele e o mar, apenas a rua deserta e as dunas. Ao longe, o cinzento das ondas que vão e vêm sempre de forma diferente, uma inconstância digna de Heraclito de Éfeso à qual apenas a perspectiva peculiar do homem conferiria padrão.

De repente, a ideia surge e senta-se e começa a escrever. Todo o enredo iria ser construído a partir do personagem principal, um ser astuto e forte, completamente desprovido de escrúpulos.

“Já chega” Disse o outro, as mãos aproximando-se da cadeira

O escritor fitou-o com terror

“Que, que me vais fazer?”

O intruso colocou a cadeira junto da janela e retorquiu em voz alta, com um sorriso cruel

“Vou ler-te o fim. Não queres saber como acaba o meu romance?”

A cadeira estava agora junto à portada aberta, a escassos trinta centímetros do vazio. Novamente os passos atrás de si. A voz voltou para terminar a leitura

A portada estava aberta e ele sentia o vento frio roçar as cordas e entrar roupa adentro. Em pânico e paralisado pelo medo, o escuro da noite não lhe permitia ver quase nada mas ele sabia onde estava, imaginava já o impulso e a queda.

Novamente passos. Desta vez, atrás de atrás de si.

“Alto. Nem um movimento!” rugiu a voz, imperiosa.

Ouviu então o estampido do projéctil. Num único segundo, os passos que morrem, o corpo que sai de atrás de si para o vazio…

As mãos puxaram novamente a cadeira para dentro. E ele viu então surgir a cara do Inspector Santos acompanhado pelos dois polícias. Que sorte! Que sorte tê-los criado também.

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2 comentários:

Estes textos metalingüísticos são sempre traiçoeiros, a possibilidade de se perder e fazer com o que o edifício narrativo desabe é enorme, porém você consegue escapar disto e, ao apresentar uma história dentro da outra, tal qual como um "Mil e Uma Noites", acaba contando sempre a mesma história.

O que atrapalhou um pouco foi a formatação, pois para ler os últimos trechos tive que ampliar os caracteres (crtl+), senão seria impossível terminar de ler.

Um texto surpreendente.

Quem apareceu primeiro, o ovo ou a galinha? Quem criou quem?
A história é interessante e exige algum esforço do leitor.
Discordo de dar o nome «Olhos fundos» a uma personagem, achei piada ao «Teya»,(piada portuguesa) acho pouco importante o capítulo II, escrevendo-o parece-me que deveria ser em itálico como continuação da história do livro.
Como concorrente ao tema «Passos...» e ao género «Suspense», seria criticado pela pouca presença daqueles e a pouca intensidade deste.
Fora do concurso, é bom!

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