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sábado, 3 de outubro de 2015

Um pouco de azul para um coração amarelo



— UM MUNDO MOVIDO A FRUSTRAÇÕES.
            Camila mexeu o saquinho do chá mais um pouco, deu um gole cuidadoso para não queimar a boca, e assentiu para si mesma, satisfeita. Lambeu os lábios e disse:
            — Acho que você enxerga a existência humana sob uma perspectiva niilista demais.
            — Freudiana, na verdade, Camila. Freudiana.
            Camila deu de ombros.
            — Tanto faz. Você diz que é freudiana quando quer falar em verdades, mentiras e sexo, mas sempre que parte para generalidades, bom, se comporta como um niilista maluco de província.
            — Veja — ele apontou para o calçadão da praia, do outro lado da rua —, pessoas vestindo sungas coloridas, Camila. Sungas coloridas! Não há alegria no mundo que justifique o uso de sungas coloridas!
            Ela sorriu.
            — Você tá exagerando.
            — Talvez, talvez, mas você há de concordar comigo que
            — Ah, não me vem com mais uma daquelas teorias malucas que você costuma
            Ele a interrompeu:
            — Sério, escuta essa: primeiro, estive pensando que, além das sungas coloridas, quero dizer, estive pensando que tudo o que não é essencial, na vida, sim? Tudo o que não é essencial, bem, é contingente, não? Será que cortar tudo o que for contingente não é uma maneira de alcançar a felicidade?
            Ela fez sinal para que ele parasse.
            — Nós já falamos sobre a felicidade antes, João. Você sabe o que eu penso.
            Ele a encarou em silêncio por alguns segundos.
            — Seu café vai esfriar.
            — Você sim é a niilista, Camila, não eu. Não eu.
            Por alguns instantes não disseram mais nada:
João ficou a olhar o outro lado da rua, em direção ao mar. Pensava: Meu deus, sungas coloridas. Deus!
Camila, por sua vez, pensava simplesmente: Não consigo entender como o João consegue ser tão... idealista? Passional? Aquela palavra que identifica bem quem não consegue simplesmente aceitar as coisas sem parar pra fazer metafísica a respeito. Quer dizer, ela não sabia se existia uma palavra assim, mas sabia que existia o João, e o João era assim.
— Deveríamos admitir de uma vez por todas — começou ele — que um, não somos animais monogâmicos; dois, não somos bons; três... não deveríamos levar as comédias românticas tão a sério?
Camila deu uma gargalhada.
— Isso é uma pergunta?
— Veja bem esse último item, Camila. Levar as comédias românticas a sério tem deixado um monte de gente frustrada, não é? A vida não é uma comédia romântica. A vida tá mais para o caos, a tragédia, o horror, o surrealismo... uma mistura maluca entre Lynch (It’s a strange world, Sandy!), Bergman, Tarantino, Gaspar Noé e, sei lá, algum diabo bêbado dadaísta ou aquele canadense do filme perturbador que não conseguimos assistir até o final, como era o nome?
— Subconcious Cruelty.
— Do diretor, Camila.
— Ah, do diretor eu não lembro. Alguma coisa Sadam.
— Alguma coisa Sadam?
— É, tipo Sadam Hussein.
João ficou em silêncio, olhando pra xícara, o cenho franzido.
— Bom, não importa — deu de ombros — A vida, eu dizia, é como se todos esses caras juntos tivessem resolvido fazer um filme e, bom, a porra toda tá aí, né? Tá rolando nesse exato momento, quer dizer, tá rolando só que um pouco pior, né?
Camila não respondeu, limitou-se a encarar a xícara, pensar — e era verdade — que alguma tristeza aos poucos tomava conta dela.
— A merda, Camila, a merda tá girando feito um furacão, caindo pra cima de tudo quanto é nêgo. A merda é uma roleta, a merda não respeita idade cor classe social, não. A merda simplesmente cai em cima de você quando você menos espera e
— Você pode usar uma outra metáfora, João?
— Qual o problema com a merda?
— Não gosto de falar sobre... merda quando estou à mesa.
Voltaram a ficar em silêncio. Foi Camila quem quebrou o silêncio dessa vez:
— Tenho o coração amarelo.
— Neruda?
— Sim, Neruda.
— Não estou perguntando, Camila, estou afirmando.
— Meu deus, como você é pedante, João. Além disso, foi uma pergunta. Você falou em tom de pergunta.
— Não é isso, Camila. É que não estou acreditando que você tá citando Neruda, só isso.
— E por que não?
— Eu estava apaixonado por você quando lhe dei o box com os livros de Neruda. Você nunca correspondeu ao meu amor, falou que odiava poesia, não quis aceitar o presente. Lembra o que aconteceu depois?
— Sim. Você ameaçou se jogar da janela do apartamento e ficou lá dependurado feito um maluco até me fazer prometer que não apenas iria aceitar, como ainda leria tudo.
— E agora você me cita Neruda?
— Cito, ué. Neruda explica como me sinto: tenho um coração amarelo. Talvez por isso nunca tenha correspondido ao seu amor, talvez por isso não tenha me apaixonado mais desde que o, bom, você sabe quem, você sabe o quê.
João respirou fundo, entristecido.
— Não fica assim, João. Eu te amo. Não é como você gostaria, mas você é meu melhor amigo.
— Camila, tudo bem, acho que já falamos tanto sobre isso que já conhecemos até mesmo as vírgulas e as entonações do discurso um do outro — ela sorriu —, mas, olha só, que tal colocarmos um pouco de tinta azul nesse coração amarelo, hã? Ele pode ficar, sei lá, verde, que tal? Um coração verde, que poderei amadurecer e
— E, maduro, ele voltará a ser amarelo, João. Por favor, eu já passei dessa fase, você é que levou as comédias românticas a sério demais.
João sorriu, finalmente derrotado. E, derrotado, falou:
— Uma mistura maluca entre Lynch-Bergman-Tarantino-Gaspar Noé e algum diabo bêbado dadaísta ou aquele canadense do filme perturbador que não conseguimos assistir até o final então?
— Subconcious Cruelty.
— Alguma coisa Sadam.
— Alguma coisa Hussein.
— Acho que devemos pedir a conta.
— Tudo bem. Você quer caminhar na praia?
— Não vou suportar as pessoas com sungas coloridas, Camila.
— Concentre-se no pôr-do-sol. Concentre-se em mim, João.

— Tudo bem.

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