Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O GIGANTESCO TORMENTO DE DOROTEIA

Doroteia sempre teve medo de anão.
Desde muito criancinha.
Uma vez, estava num elevador público com a avó. Entra um anão.
- Né neném não, né Naná?

Foi sua primeira manifestação da fobia, que a persegue a vida inteira.
Na infância mais madura, foi uma sequência de oportunidades perdidas.
- Vamos ao cinema, Doroteia?
- Ver o quê?
- Branca de Neve.
- Não vou.

No aniversário da amiguinha.
- Quem são aqueles bichos enfeitando a mesa de docinhos?
- Gnomos, filhinha.
- Vamos embora.

Na adolescência deixou de ver Willow na Terra da Magia, com a turma do colégio.
- Aquela sociedade que só tem anão? Tô fora.

Já adulta, um amigo a convidou para uma festa num barco. No melhor estilo Ilha da Fantasia, 
o amigo produziu um anão vestido de marinheiro para receber os convidados no cais. 
Por pouco não levou um tapa e caiu dentro d’água. Doroteia esteva a beira de cometer um crime.

Uma vez quase cometeu. Havia um anão flanelinha na porta do saudoso Real Astória no Baixo Leblon e Doroteia teve um impulso assassino de dar marcha a ré sobre ao cidadão que estava ali ganhando uns trocados. Foi contida a tempo pela razão e bom senso. Sorte dela e dele. 

Trintona, profissional, casada e com filhos, engoliu seu medo que a atormentava para não 
passar para as crianças. Recusava-se a ler ou ouvir qualquer notícia sobre o escândalo dos anões do orçamento. Mas circo, filme ou teatrinho com anão era função do marido.

Soube por alto que haviam proibido na Inglaterra a indigna modalidade esportiva Arremesso de Anão e que muitos anões arremessados - com todos os dispositivos de segurança, claro  - protestaram por perderem o ganha-pão. Doroteia se enterneceu, mas não esticou assunto.

Um sábado sem marido foi na despedida de solteira de uma amiga num daqueles shows de streaper masculinos. Belos rapazes, belos corpos, belos músculos, belos órgãos. Até que surgiu um anão. 
Doroteia se desesperou. Saiu porta afora da boate e pegou um táxi
Correu risco. Ainda bem que o motorista não era anão.

Uma madrugada, acordou com um barulho estranho na sala. Era o marido insone que assistia a Game of Thrones, quando bem na telona aparecia o anão Tyrion Lannister. Doroteia mandou o controle remoto na televisão. Charivari no casamento, crianças acordando chorando, imenso prejuízo e 30 gotas de Rivotril para sossegar. 15 para cada um. 

Doroteia se açoitava com a fobia. Seria preconceituosa? Destrambelhada? Politicamente incorreta? Iminente criminosa? Assassina enrustida? Potencial psicopata? Teria sido traumatizada na tenra infância?

Submeteu-se a uma sessão de hipnose.

Voltou ao tempo. Dois anos de idade. Viu-se subindo nos dedinhos gordos, 
alcançando a maçaneta do quarto dos pais e pronto. O trauma de cena primária? 
Pai e mãe gemendo um sobre o outro? 
Nada disso. O casal assistia a um filme pornô, onde um anão 
de tênis sodomizava uma cabrita.

- Foi isso. Não posso carregar esse trauma vida afora.

Procurou um psicanalista.
Na surdina, não queria que ninguém soubesse que precisava de tratamento. 
Não pediu indicações a ninguém, não se aconselhou com seu clínico, nem com seu marido, nem com o ginecologista. Abriu o catálogo do plano de saúde e foi com a cara e a coragem.

Um fim de tarde, de óculos escuros e lenço na cabeça, bateu na porta de um consultório: Dr. José Luiz Arrabal Cartagena, psiquiatra e psicanalista. 
Estufou o peito e entrou. É hoje.

Seguiu-se um surto. Chamem a ambulância, tragam uma camisa de força. 
Perdeu estribeiras e sapato.
O psicanalista não passava de metro e meio.




Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


0 comentários:

Postar um comentário