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domingo, 18 de outubro de 2015

O meu Che

Para Silvana

O meu Che não é humano, e sim um gato que, agora, está no fim de sua longa vida de 15 anos e que, nos últimos dias, esteve muito, muito perto da morte. Há pouco mais de um mês foi parando de comer, e alimentá-lo tornou-se algo muito difícil. Ora aceita uma coisa, mas bem pouquinho, depois não mais, e é preciso descobrir o que ele vai conseguir comer. E assim o gato que já foi tão imenso e gordo, mal cabendo em meu colo, está magrinho e diminuto. Diminuiu tanto a ingestão de alimentos nessa semana que a veterinária falou que eu me preparasse, a hora estava chegando. E é aí que tudo aquilo que com facilidade orientamos para as outras pessoas cai por terra. Que percebemos o quanto um bichinho de estimação é muito mais do que um bichinho de estimação.
Acontece que sua existência mescla-se à nossa de tal forma que a ameaça dessa imbricação se romper é avassaladora, uma desestruturação profunda. O Che é muito mais do que esse gato cuja cara parece desenhada à mão, tamanha a beleza dos traços felinos, com seus longos pelos de cores variadas, em tons difíceis de definir, meio dourado em certos momentos, acinzentado em outro, sempre vestindo luvinhas brancas. Eu olho para ele e o que vejo é também a sobrevivência de uma Marina que não sou mais, ao menos não mais com exatidão. Uma Marina de quinze anos atrás, que fez questão de nomear o gato como Che, que temia a forma como os seres humanos parecem sempre destruir as poucas experiências de transformação e generosidade que já foram feitas neste nosso mundo, mas que ainda assim achava que de algum jeito era possível mudar, revolucionar. Uma Marina que quase que reverenciava todos que pegaram em armas, em sua pureza, para transformar o mundo. Que tinha menos compromissos, apesar de tantas tarefas a cumprir, que era mais solta, mais ingênua, mas também tinha muitos receios. Que era mais jovem. Que queria muito escrever e não parava de iniciar textos, mas tinha muito medo também, por isso os guardava, interrompidos, e quantas, quantas foram as vezes em que os destruía.
E que levantava da cama às cinco e meia, mesmo tendo ido dormir à uma ou às duas da manhã, acordada pelo miado do gatinho que conseguia subir na árvore em frente à casa, de lá pular para o telhado, andá-lo todinho e ir para outros telhados, mas não conseguia voltar sozinho. Para pular do telhado para o galho e descer pela árvore, ele teria de dar um salto para cima, para um lugar mais alto, e simplesmente não tinha coragem, apesar de assistir à sua professora, uma linda gata preta de coleirinha vermelha que morava na clínica em frente à minha casa, desenvolver o movimento com facilidade e precisão. Então ele ia até o fundo do telhado comprido, alcançava a laje, mais baixa e que ficava sobre a área de serviço, e de lá miava pedindo ajuda.
Sei que era o fim, mas eu não conseguia fazer de outra forma. Acordava, levantava, pegava uma escada e a encostava do lado de fora da janela da cozinha. Punha então um pé e depois o outro sobre a grade, dependurando-me (o pé-direito da casa era muito alto, o imóvel era de 1922) e então catando o Che pelo cangote, para então voltarmos, eu e ele, ao chão. E muitas eram as vezes em que ele resistia, tinha medo, e eu tinha de atraí-lo com comidas e petiscos, fazer artimanhas.
As pessoas achavam que era preciso dar um basta, por isso um dia o deixei lá em cima, quase tendo um troço de tanta pena, a ver se ele aprendia a descer sozinho. Passou um dia e uma noite lá. Eu pus comida em cima da laje e só não o tirava porque me sentia constrangida a ser firme no processo educativo. Enfim ele desceu. Sozinho. Mas não pela árvore, e sim dando um salto de fato imenso, da laje ao chão. Um salto que fazia um barulhão quando ele pousava as patas no piso de cimento do quintal, e que me fazia temer por elas, patas – aos nove meses ele tinha sido gravemente atropelado e, além do pulmão perfurado, fraturara o fêmur, que havia ficado tão moído que exigiu a colocação de um grande pino que está com ele até hoje. E se o pino se mexesse com um salto tão grande, num gato pesado como ele era? E se a pata tivesse novo problema?
Felizmente não teve, e assim passaram a ser as descidas do Che de seus passeios noturnos, os quais permaneceram, mas tiveram seu raio de alcance diminuído depois que ele ficou com uma febre misteriosa e que os veterinários da USP suspeitaram fosse o que até então eu nunca nem tinha ouvido falar: Aids de gato. Não era, mas depois dessa decidi que havia mais que passado da hora de castrá-lo, e os homens da casa (meu então companheiro e um amigo nosso que habitava o quartinho do fundo) que se calassem com seus argumentos de que a castração era uma violência ao ser do gato e sei lá mais o quê. Que eu assumiria uma posição repressora, violenta ao extremo. Que fosse, eu queria meu gato vivo, já tinha passado sustos demais com ele, o atropelamento fora horrível e ele só sobrevivera porque seu organismo era novo e conseguiu se recuperar rápido.
O Che traz ainda a memória de uma Marina que mudou de casa diversas vezes, sempre levando o gato, que a todas se adaptou. Em uma, fez amizade com o siamês Toni, que vinha chamá-lo para passearem juntos pelos muros e telhados. Em outra, teve de conviver com uma cadela que morava na casa da frente, e assim só podia sair para suas voltas pelos fundos, onde ficava nossa casa. Che que depois sofreu talvez a maior das humilhações de sua vida de gato, tendo ido morar em uma casa onde já havia um cachorro. O cachorro até o recebeu bem, mas ele, com sua vivência de gato que andava na rua e com seu ódio instintivo e ancestral aos cães, nunca o aceitou. Ao contrário, a cada oportunidade de encontro ameaçava-lhe patadas no focinho ou nos olhos.
Uma Marina que certa altura julgou o Che profundamente sozinho pela casa, sem mais sair, tantos eram os casos de envenenamento de gatos na vizinhança. Certamente ele poderia aproveitar a companhia de um semelhante, sempre fora receptivo aos demais gatos e uma época, lá no início, até havia meio que posto pra dentro uma gata de rua, linda, que depois morreu atropelada. Só ele que se sentiu violentado com a minha ideia de trazer uma gatinha filhote para ser sua amiga, e passou a fazer “fuuuu”, com a boca, para mim, de pura indignação, fazendo que eu abortasse o plano e, envergonhadíssima, devolvesse a gatinha aos donos da mãe dela.
Um Che que sempre ficava bravo quando algum gato se aproximava de seu jardim, e mesmo por dentro do vidro dava um jeito de espantar os invasores, mas aceitou a curiosidade de um jovem gato preto e muito peludo, magérrimo e faminto, com quem eu também simpatizei de imediato e passei a alimentar, até deixá-lo entrar e ele virar o Romeu, que está aqui, hoje, conosco.
Que depois do atropelamento perdeu a ingenuidade que o fazia deitar-se no meio da rua onde eu morava e passou a ser mais medroso e arisco (foi mesmo preciso reeducá-lo para sair, tamanho o medo da rua que ele passou a ter, logo depois de passados os quarenta dias de recuperação da cirurgia na pata); que abria portas, pulando nas maçanetas, por mais altas que fossem; que quebrou meu rádio-relógio, muito anos atrás, para fazer barulho e me acordar, para que eu pusesse comida fresca em seu potinho; que de novo quase morreu quando descobrimos sua insuficiência renal, parando de comer, tomando litros de soro, tendo que comer uma ração especial da qual, na época, só havia duas marcas: uma que ele não aceitou de jeito nenhum, e outra, importada, que às vezes ficava retida no porto de Santos e não se achava em lugar nenhum, fazendo-me rodar por lojas e lojas pra achar alguma remanescente. E que custava um dinheiro que eu não tinha. Mas que começou a ser tratado com homeopatia e foi melhorando tanto, que pôde voltar para a ração comum.
De lá para cá sempre tomou os remédios que a Dra. Silvana – a “minha veterinária”, como tantas vezes soltei sem querer – passava e viveu uma vida boa, não saindo mais para as ruas, mas sendo um mestre para o jovem Romeu, o qual, depois de uma tentativa de ser o reizinho felino da casa, logo se sujeitou à sabedoria do Che, com suas muitas vidas e experiências.
Agora a vida do Che está chegando ao fim e é muita coisa que vai com ele. Ele é esse companheiro que ia comigo até no banheiro, que tomava café da manhã sentado na cadeira ao lado, que comia o requeijão e a manteiga, e é também a memória de minha vida como adulta, até então. Está comigo praticamente desde que saí da casa dos meus pais, viveu aventuras e mais aventuras e fazia por onde honrar seu nome, escolhido com tanta paixão. Seu nome que ficou também como um resto de mim, e quantos não foram os que brincaram, ao ouvir o nome dos dois gatos, Ah, um mais revolucionário, outro mais romântico! (E isso porque o nome Romeu foi escolhido ao mero acaso, motivado pelo Romeu borboleta da história de Ruth Rocha, que tanto ouvíamos na época em que o gato surgiu em casa, eu e meu filho, narrada pela própria, e com a expressão de angústia da mamãe borboleta: “Romeu, filho meu, onde você se meteu?” que ficava em nossas cabeças, fazendo que Romeu fosse o primeiro nome a nos vir à mente.)
Pensar na morte, mesmo de um bichinho, é enfrentar que nós todos temos um fim, que por mais que tenhamos que esquecer esta verdade para conseguirmos viver a nossa vida de todo dia, ela tem realmente um fim. Não é brincadeira, nem teoria. E o duro é que o fim não é só inevitável. É feio, é triste, nos assusta e repugna. Deprime. Nos faz pensar em até que ponto vale sustentar a vida, no que é o sofrimento do outro, em até quanto conseguimos sentir o outro e saber o que vai ser melhor para ele – ainda mais assim, quando o outro não tem como falar para nós. E em como nos agarramos à vida com tamanho fervor, essa vida que nos traz tantas dificuldades, mas da qual não queremos nos apartar e nem queremos de jeito nenhum que aqueles que nos são queridos se apartem. Em quantas pessoas já confortamos, mas na nossa vez é sempre difícil, porque viver é sempre diferente de observar, mais ainda de julgar. Em que atravessar a morte de um animal é um aprendizado para podermos lidar com as outras mortes, será? No nosso egoísmo em querer a vida, mas também no quanto é difícil saber quando chegou o fim, nas reviravoltas dos processos e coisas, e mais um monte de coisas que nem terminamos de formular.

Sei que das outras tantas vezes em que chegou muito perto do fim, o Che conseguiu reagir, renascendo. Desta vez o quadro é bem outro. Há a idade, uma doença crônica e grave. Ainda assim, ele está me brindando mais uma vez. Não com uma ressurreição, mas com uma leve melhorada, trazendo uma alegria a meus olhos por ver os olhinhos dele com um pouco de brilho novamente. Sei que não teremos como driblar a morte, mas a força deste gato me parece mesmo incrível.

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2 comentários:

Que linda a vida do seu Che. Recentemente li alguns livros sobre os últimos dias e morte do Che Guevara, ele também teve a grandeza e a força dos gatos.
Tive gatos que se foram, particularmente um que viveu muitos anos, assim como o Che e morreu velhinho. Fiquei muito triste, mas sabe, eles são tão fantásticos, tão diferente das lembranças que os humanos deixam, pois as deles são só boas que o conforto veio rápido e a saudade não traz dor, até hoje.
Melhoras para ele... tão altivo nessa foto.

Muito obrigada por sua leitura e por todo o apoio!

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