Para Silvana
O meu Che não é humano, e sim um gato que, agora, está no fim de sua longa vida de 15 anos e que, nos últimos dias,
esteve muito, muito perto da morte. Há pouco mais de um mês foi parando de
comer, e alimentá-lo tornou-se algo muito difícil. Ora aceita uma coisa, mas bem
pouquinho, depois não mais, e é preciso descobrir o que ele vai conseguir
comer. E assim o gato que já foi tão imenso e gordo, mal cabendo em meu colo,
está magrinho e diminuto. Diminuiu tanto a ingestão de alimentos nessa semana
que a veterinária falou que eu me preparasse, a hora estava chegando. E é aí
que tudo aquilo que com facilidade orientamos para as outras pessoas cai por terra.
Que percebemos o quanto um bichinho de estimação é muito mais do que um
bichinho de estimação.
Acontece
que sua existência mescla-se à nossa de tal forma que a ameaça dessa imbricação
se romper é avassaladora, uma desestruturação profunda. O Che é muito mais do que
esse gato cuja cara parece desenhada à mão, tamanha a beleza dos traços felinos,
com seus longos pelos de cores variadas, em tons difíceis de definir, meio
dourado em certos momentos, acinzentado em outro, sempre vestindo luvinhas
brancas. Eu olho para ele e o que vejo é também a sobrevivência de uma Marina
que não sou mais, ao menos não mais com exatidão. Uma Marina de quinze anos
atrás, que fez questão de nomear o gato como Che, que temia a forma como os
seres humanos parecem sempre destruir as poucas experiências de transformação e
generosidade que já foram feitas neste nosso mundo, mas que ainda assim achava
que de algum jeito era possível mudar, revolucionar. Uma Marina que quase que reverenciava todos que pegaram em armas, em sua pureza, para transformar o
mundo. Que tinha menos compromissos, apesar de tantas tarefas a cumprir, que era
mais solta, mais ingênua, mas também tinha muitos receios. Que era mais jovem. Que queria muito
escrever e não parava de iniciar textos, mas tinha muito medo também, por isso
os guardava, interrompidos, e quantas, quantas foram as vezes em que os destruía.
E
que levantava da cama às cinco e meia, mesmo tendo ido dormir à uma ou às duas
da manhã, acordada pelo miado do gatinho que conseguia subir na árvore em
frente à casa, de lá pular para o telhado, andá-lo todinho e ir para outros
telhados, mas não conseguia voltar sozinho. Para pular do telhado para o galho e descer pela árvore,
ele teria de dar um salto para cima, para um lugar mais alto, e simplesmente não
tinha coragem, apesar de assistir à sua professora, uma linda gata preta de
coleirinha vermelha que morava na clínica em frente à minha casa, desenvolver o
movimento com facilidade e precisão. Então ele ia até o fundo do telhado
comprido, alcançava a laje, mais baixa e que ficava sobre a área de serviço, e
de lá miava pedindo ajuda.
Sei
que era o fim, mas eu não conseguia fazer de outra forma. Acordava, levantava,
pegava uma escada e a encostava do lado de fora da janela da cozinha. Punha
então um pé e depois o outro sobre a grade, dependurando-me (o pé-direito da
casa era muito alto, o imóvel era de 1922) e então catando o Che pelo cangote,
para então voltarmos, eu e ele, ao chão. E muitas eram as vezes em que ele
resistia, tinha medo, e eu tinha de atraí-lo com comidas e petiscos, fazer
artimanhas.
As
pessoas achavam que era preciso dar um basta, por isso um dia o deixei lá em
cima, quase tendo um troço de tanta pena, a ver se ele aprendia a descer
sozinho. Passou um dia e uma noite lá. Eu pus comida em cima da laje e só não o
tirava porque me sentia constrangida a ser firme no processo educativo. Enfim
ele desceu. Sozinho. Mas não pela árvore, e sim dando um salto de fato imenso,
da laje ao chão. Um salto que fazia um barulhão quando ele pousava as patas no piso de cimento do quintal, e que me fazia temer por elas, patas – aos nove meses ele tinha sido
gravemente atropelado e, além do pulmão perfurado, fraturara o fêmur, que havia
ficado tão moído que exigiu a colocação de um grande pino que está com ele até
hoje. E se o pino se mexesse com um salto tão grande, num gato pesado como ele
era? E se a pata tivesse novo problema?
Felizmente
não teve, e assim passaram a ser as descidas do Che de seus passeios noturnos, os
quais permaneceram, mas tiveram seu raio de alcance diminuído depois que ele ficou
com uma febre misteriosa e que os veterinários da USP suspeitaram fosse o que
até então eu nunca nem tinha ouvido falar: Aids de gato. Não era, mas depois
dessa decidi que havia mais que passado da hora de castrá-lo, e os homens da
casa (meu então companheiro e um amigo nosso que habitava o quartinho do fundo)
que se calassem com seus argumentos de que a castração era uma violência ao ser
do gato e sei lá mais o quê. Que eu assumiria uma posição repressora, violenta
ao extremo. Que fosse, eu queria meu gato vivo, já tinha passado sustos demais
com ele, o atropelamento fora horrível e ele só sobrevivera porque seu
organismo era novo e conseguiu se recuperar rápido.
O
Che traz ainda a memória de uma Marina que mudou de casa diversas vezes, sempre
levando o gato, que a todas se adaptou. Em uma, fez amizade com o siamês Toni,
que vinha chamá-lo para passearem juntos pelos muros e telhados. Em outra, teve
de conviver com uma cadela que morava na casa da frente, e assim só podia sair
para suas voltas pelos fundos, onde ficava nossa casa. Che que depois sofreu talvez
a maior das humilhações de sua vida de gato, tendo ido morar em uma casa onde
já havia um cachorro. O cachorro até o recebeu bem, mas ele, com sua vivência
de gato que andava na rua e com seu ódio instintivo e ancestral aos cães, nunca
o aceitou. Ao contrário, a cada oportunidade de encontro ameaçava-lhe patadas
no focinho ou nos olhos.
Uma
Marina que certa altura julgou o Che profundamente sozinho pela casa, sem mais sair, tantos
eram os casos de envenenamento de gatos na vizinhança. Certamente ele poderia
aproveitar a companhia de um semelhante, sempre fora receptivo aos demais
gatos e uma época, lá no início, até havia meio que posto pra dentro uma gata de rua, linda, que depois morreu atropelada. Só ele que se sentiu
violentado com a minha ideia de trazer uma gatinha filhote para ser sua amiga, e
passou a fazer “fuuuu”, com a boca, para mim, de pura indignação, fazendo que
eu abortasse o plano e, envergonhadíssima, devolvesse a gatinha aos donos da
mãe dela.
Um
Che que sempre ficava bravo quando algum gato se aproximava de seu jardim, e
mesmo por dentro do vidro dava um jeito de espantar os invasores, mas aceitou a
curiosidade de um jovem gato preto e muito peludo, magérrimo e faminto, com
quem eu também simpatizei de imediato e passei a alimentar, até deixá-lo entrar
e ele virar o Romeu, que está aqui, hoje, conosco.
Que
depois do atropelamento perdeu a ingenuidade que o fazia deitar-se no meio da
rua onde eu morava e passou a ser mais medroso e arisco (foi mesmo preciso
reeducá-lo para sair, tamanho o medo da rua que ele passou a ter, logo depois
de passados os quarenta dias de recuperação da cirurgia na pata); que abria portas,
pulando nas maçanetas, por mais altas que fossem; que quebrou meu
rádio-relógio, muito anos atrás, para fazer barulho e me acordar, para que eu
pusesse comida fresca em seu potinho; que de novo quase morreu quando
descobrimos sua insuficiência renal, parando de comer, tomando litros de soro,
tendo que comer uma ração especial da qual, na época, só havia duas marcas: uma
que ele não aceitou de jeito nenhum, e outra, importada, que às vezes ficava
retida no porto de Santos e não se achava em lugar nenhum, fazendo-me rodar por
lojas e lojas pra achar alguma remanescente. E que custava um dinheiro que eu não
tinha. Mas que começou a ser tratado com homeopatia e foi melhorando tanto, que
pôde voltar para a ração comum.
De
lá para cá sempre tomou os remédios que a Dra. Silvana – a “minha veterinária”,
como tantas vezes soltei sem querer – passava e viveu uma vida boa, não saindo
mais para as ruas, mas sendo um mestre para o jovem Romeu, o qual, depois de
uma tentativa de ser o reizinho felino da casa, logo se sujeitou à sabedoria do
Che, com suas muitas vidas e experiências.
Agora
a vida do Che está chegando ao fim e é muita coisa que vai com ele. Ele é esse
companheiro que ia comigo até no banheiro, que tomava café da manhã sentado na
cadeira ao lado, que comia o requeijão e a manteiga, e é também a memória de
minha vida como adulta, até então. Está comigo praticamente desde que saí da
casa dos meus pais, viveu aventuras e mais aventuras e fazia por onde honrar
seu nome, escolhido com tanta paixão. Seu nome que ficou também como um resto
de mim, e quantos não foram os que brincaram, ao ouvir o nome dos dois gatos,
Ah, um mais revolucionário, outro mais romântico! (E isso porque o nome Romeu
foi escolhido ao mero acaso, motivado pelo Romeu borboleta da história de Ruth
Rocha, que tanto ouvíamos na época em que o gato surgiu em casa, eu e meu filho,
narrada pela própria, e com a expressão de angústia da mamãe borboleta: “Romeu,
filho meu, onde você se meteu?” que ficava em nossas cabeças, fazendo que Romeu
fosse o primeiro nome a nos vir à mente.)
Pensar
na morte, mesmo de um bichinho, é enfrentar que nós todos temos um fim, que por
mais que tenhamos que esquecer esta verdade para conseguirmos viver a nossa
vida de todo dia, ela tem realmente um fim. Não é brincadeira, nem teoria. E o
duro é que o fim não é só inevitável. É feio, é triste, nos assusta e repugna. Deprime.
Nos faz pensar em até que ponto vale sustentar a vida, no que é o sofrimento do
outro, em até quanto conseguimos sentir o outro e saber o que vai ser melhor
para ele – ainda mais assim, quando o outro não tem como falar para nós. E em
como nos agarramos à vida com tamanho fervor, essa vida que nos traz tantas
dificuldades, mas da qual não queremos nos apartar e nem queremos de jeito nenhum que aqueles
que nos são queridos se apartem. Em quantas pessoas já confortamos, mas na
nossa vez é sempre difícil, porque viver é sempre diferente de observar, mais
ainda de julgar. Em que atravessar a morte de um animal é um aprendizado para podermos lidar com as outras mortes, será? No nosso egoísmo em querer a vida, mas também no quanto é
difícil saber quando chegou o fim, nas reviravoltas dos processos e coisas, e mais um monte de coisas que nem terminamos
de formular.
Sei
que das outras tantas vezes em que chegou muito perto do fim, o Che conseguiu reagir,
renascendo. Desta vez o quadro é bem outro. Há a idade, uma doença crônica e
grave. Ainda assim, ele está me brindando mais uma vez. Não com uma
ressurreição, mas com uma leve melhorada, trazendo uma alegria a meus olhos por
ver os olhinhos dele com um pouco de brilho novamente. Sei que não teremos como
driblar a morte, mas a força deste gato me parece mesmo incrível.
2 comentários:
Que linda a vida do seu Che. Recentemente li alguns livros sobre os últimos dias e morte do Che Guevara, ele também teve a grandeza e a força dos gatos.
Tive gatos que se foram, particularmente um que viveu muitos anos, assim como o Che e morreu velhinho. Fiquei muito triste, mas sabe, eles são tão fantásticos, tão diferente das lembranças que os humanos deixam, pois as deles são só boas que o conforto veio rápido e a saudade não traz dor, até hoje.
Melhoras para ele... tão altivo nessa foto.
Muito obrigada por sua leitura e por todo o apoio!
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