Se
alguém a desenhasse, assim, saracoteando o corpo sebento pelas ruas da cidade,
daria por certo, sobre o risco com que traçasse aquele corpo esguio, uma
aguada num tom verde alface que é, ainda, o tom do seu casaco, veludo canelado e
dois botões, um deles apenas, e nem será o genuíno, ajustando o casaquito curto
sobre o trapo do que terá sido uma camisa, um tecido sedoso com ramagens, ou
flores, ou outro desenho que sumiu na voragem do muito sujo.
E a
sair das mangas, muito justas e curtas, dois pulsos magros e umas mãos de dedos
longos e unhas escuras.
Unhas
cortadas rente que não batem nada certo.
Mas o
pormenor das unhas não faria parte do desenho.
Talvez
os sapatos, informes, a chapinharem solas e tiras pelas ruas.
Que
quem a desenhasse tentaria captar-lhe o essencial se bem que a perguntar-se se
seria menina, ou teria sido senhora, aquela rapariga de passos incertos pelas
ruas da cidade; aquela rapariga silabando dizeres incongruentes nuns lábios cuja
cor se confunde com o negro da cavidade onde o alvo dos dentes nem já se
presume.
E quem
quisesse fazer-lhe mais do que um simples esboço acharia o instante de lhe captar
um pormenor mais cuidado, quando, de sopetão, ela parasse naquela atitude muita
sua de falar aos objectos. Falas desentendidas ao ouvido dos passantes,
linguagem que a rapariga terá aprendido, ainda criança, em outro país, quiçá em
outro mundo.
Pormenores,
ainda, quando ela parasse numa montra ensimesmada com o seu reflexo, a saia
subida acima dos joelhos, o tecido preso na cintura a formar uns gomos onde
guarda segredos misturados com bocados de pão seco e bolorento e os guardanapos
de papel que pede a apontar nas mesas das esplanadas.
Uma
saia que fede a caca seca de cachorro.
Um
esboço que alguém fizesse em folha alva havia de salientar-lhe, sim, a saia que
ela traz repuxada e, numa aguarela suave, faria também aperceber o sarro que
lhe domina a pele das pernas, das mãos e do rosto.
Um
esboço apenas, não um desenho fiel e, no entanto, a dar ensejo, a quem nunca a
tivesse visto, de exclamar, ainda que nada dissesse, ainda que ficasse apenas
com o ar piedoso que é o que coloca cada um que a vê saracoteando-se pelas ruas
da cidade: olha, uma pedinte. E, a fixar-lhe os lábios que no desenho sugeririam
um balbuciar de indefinições: olha o que a droga fez a esta desgraçada.
Um
retrato fiel teria que lhe expressar nos olhos aquele mundo que ela terá trazido
de outros mundos, de outros vividos, de outras gentes, outros linguajares,
doenças e choros e tantos risos, e tantos brinquedos que ela terá tido, e pai e
mãe, e até avós e dois irmãos.
Será
disso que, quem a olhe de frente, lhe verá sorrisos de criança entre os lábios secos.
Quem
a olhe, simplesmente, sem querer desviar-se daquele incómodo que é a rapariga
suja e aloucada a intrometer-se no bem-estar quotidiano.
O
mesmo sorriso que lhe adivinharia o alguém que lhe perseguisse passos
imprecisos pelas ruas da cidade na mira dum esboço, um traço que guarde aquela
rapariga entre duas páginas dum caderno.
Alguém
que a traga à luz do dia num país distante. Quem o sabe.
Um
desenho pendurado numa parede, uma moldura emoldurando, e um outro alguém a observar
e a dizer, sem mais entusiasmo do que aquele que é costume nos seres
civilizados que olham um quadro ainda que nem seja de artista de renome: que
parecida; tal e qual ela.
A
dizer assim a outro alguém e, nem dando conta da imensidão do seu desígnio.
Tal e qual a Ema, a Alluisa, a Petrova.
Alguém a dar-lhe um
nome.
Se alguém
um dia a olhasse para fazer um esboço.
Que
ninguém aparece para lhe despir aquele casaco verde alface, desatar-lhe a saia repuxada
à cintura, dar-lhe um duche.
Ninguém
que, a fazê-lo, lhe falasse com cuidado, imitando, ao menos imitando, o tom de
carinho com que ela regredisse ao berço e, assim, se deixasse ficar nuazinha: e
que bela teria sido esta rapariga, diria esse ninguém que aparecesse,
acrescentando: o tom de pele e o cabelo claro fazem adivinhar que tenha nascido
em terras frias lá a norte.
Ninguém
a jogar-lhe pelo chão, com o cuidado devido, o que ela traz embrulhado na saia
e talvez ainda julgue serem os seus sonhos.
1 comentários:
Tanta realidade e tristeza nessa beleza de conto. Dói junto com ela; dói por ela, essa menina drogada, suja e pedinte, de casaco de tom verde alface e saia que fede a caca de cachorro. Perdida há muito tempo e invisível a quase todos os olhares. A ficção retratando a miséria cotidiana. Adorei o texto.
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