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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Errantes



Madrugada. Dentro do carro trancado, insulfilme nos vidros, sentado ao lado do motorista, sou eu e mais três. Usamos capuzes, pra evitar reconhecimento. Qualquer tipo de contato que ultrapasse os códigos gestuais está proibido. Não sei quem financia esse ataque, apesar de desconfiar. A questão não é o porquê se faz isso, mas o quanto se lucra; pelo menos pra mim.

Checo a arma algumas vezes, por pura ansiedade, mesmo porque a conheço bem, e então noto um certo desconforto do motorista. Finjo não perceber, descansando a arma sobre minha coxa. Um carro passa rápido por nós. Uma buzinada longa, seguida por outra curta. Chegou a hora.

Avançamos a passos largos pela rua mal iluminada. Parecemos fantasmas em busca de novas almas. A ordem é fazer um cerco, pra não deixar ninguém escapar. Ao longe, já é possível ver dezenas de pontos luminosos. Nossos alvos. O líder gesticula. O seguimos nos esgueirando pelas paredes, a fim de manter o fator surpresa.

Morram, seus filhos das putas!, é o grito do líder ordenando a matança. Então avançamos calmamente contra aqueles viciados, encurralando-os em seu próprio beco. Alguns, certamente mais lúcidos, tentam correr, mas a única chance de escapar é vir em nossa direção. Até chamaria isso de instinto de sobrevivência, mas é uma estratégia um tanto suicida.

Após um minuto, a gritaria cessa. Restam alguns gemidos, então eu e outro cara somos ordenados a finalizá-los. Os outros dois voltam para o carro, com a intenção de trazê-lo para recolher os objetos de valor e as drogas que restaram. Evidentemente, o sistema se retroalimenta.

Não temos pressa. A vizinhança não vai chamar a polícia; deve até estar nos agradecendo pela limpeza. Descarrego minhas últimas balas e paro pra trocar o pente de munição. É então que assisto a cena mais bizarra que já vi nesse meu mundo. Uma mão se esgueira por entre o amontoado de corpos, mexendo-se com tanto empenho e força que parece pedir ajuda apenas com aquele gesto. Olho pro lado, mas o outro cara está preocupado demais em tentar achar algo de valor que possa por no bolso antes que os demais apareçam. Lembro daquele velho ditado…

Volto minha atenção àquela mão, que agora já é um braço inteiro deslocando seus antigos companheiros. Quando a cabeça aparece, puxa o ar com tanta força e ruidosamente que tomo um pequeno susto. O outro cara surge ao meu lado, e não consegue se conter.

Mas que porra é essa?, quebra o protocolo. Saca a arma.

Faço um gesto com a mão, pedindo pra que espere. No breu, a silhueta de uma figura esquelética finalmente consegue se desvencilhar dos corpos, se equilibra com alguma dificuldade e fica parada há poucos metros de nós. Após uns segundos, avança em nossa direção, cambaleante, arrastando um dos pés. O outro cara empunha a arma, mas recua, a passos curtos, assim como faço.

Quando passa por um poste mal iluminado, aquele ser me causa repugnância. Digo isso porque nunca vi nada parecido. E é impossível distinguir seu gênero. A roupa mulambenta é o que menos chama atenção. As escaras e feridas por toda a pele das pernas, braços e rosto me chocam, mesmo eu já estando acostumado a lidar com a escória no submundo.

Isso aí parece um zumbi…, fala o outro cara, entredentes, daqueles que a gente vê na TV.

É pior. É real, contesto.

O cara então atira. Na perna, arrancando-a do corpo na altura do joelho e fazendo aquele ser desabar.

Puta que pariu, isso aí injetou tudo que encontrou daquela porra nova, a russa…

Sei o que é – krokodil; mas não consigo falar, nem desgrudar os olhos da cena: o ser apoia as mãos no chão, levantando o corpo com dificuldade. Põe o joelho da perna que lhe restou no asfalto, e segue o caminho se arrastando em nossa direção.

Que loucura, cara! Que puta loucura!, diz, eufórico.

Não me afasto mais. Espero-o se aproximar, e ele levanta uma das mãos em minha direção. Seu rosto é uma massa disforme, mas a boca aberta, e o som que sai dela, me representam um lamento – um pedido de ajuda, talvez. Mas o que eu posso fazer?

Então um farol ilumina o rosto daquele ser, e o ronco do motor se torna mais alto. Olho pra trás. Eles não vão parar. Eu e o outro cara pulamos para o lado, alguns segundos antes de ouvir um arrastado chio de freio. Junto a parede, ouço um tiro e, em seguida, uma pancada seca.

Os outros saem do carro, cada um tentando entender o que aconteceu. O cara do lado do motorista observa o amontoado de ossos jogados alguns metros à frente. Olha pra mim, como que cobrando uma explicação, mas contorno o carro e paro ao lado do líder, que observa o outro comparsa deitado sobre uma poça de sangue. Providência divina, penso, e mexo no bolso do cara, jogando pro líder uma correntinha que tinha sido indevidamente apropriada.

Me afasto dali, sem nada dizer. Acabei de tomar minha decisão.

Essa é sua escolha?, grita o líder.

Hesito por um instante, mas não tenho medo. Uma rajada de tiros em minha direção. Eu sigo, sem sentir nada. Providência divina, me pergunto, e dobro a esquina. Minha visão escurece.




Foto: Long Road To Ruin – 53/365, de Simon Wicks.

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4 comentários:

Conto diferente, denso, tenso e impactante. Gostei muito.

Fico feliz que tenha gostado, Cinthia! Muito obrigado por seu comentário!
Minha intensão, com esse conto, ao utilizar elementos tão presentes em nosso cotidiano, é levar o leitor a reflexão.

Poderia ser um futuro distópico, ou mesmo pós-apocalíptico. Mas é um presente muito presente. Muito bom, Rodrigo!

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