Madrugada.
Dentro do carro trancado, insulfilme nos vidros, sentado ao lado do
motorista, sou eu e mais três. Usamos capuzes, pra evitar
reconhecimento. Qualquer tipo de contato que ultrapasse os códigos
gestuais está proibido. Não sei quem financia esse ataque, apesar
de desconfiar. A questão não é o porquê se faz isso, mas o quanto
se lucra; pelo menos pra mim.
Checo
a arma algumas vezes, por pura ansiedade, mesmo porque a conheço
bem, e então noto um certo desconforto do motorista. Finjo não
perceber, descansando a arma sobre minha coxa. Um carro passa rápido
por nós. Uma buzinada longa, seguida por outra curta. Chegou a hora.
Avançamos
a passos largos pela rua mal iluminada. Parecemos fantasmas em busca
de novas almas. A ordem é fazer um cerco, pra não deixar ninguém
escapar. Ao longe, já é possível ver dezenas de pontos luminosos.
Nossos alvos. O líder gesticula. O seguimos nos esgueirando pelas
paredes, a fim de manter o fator surpresa.
Morram,
seus filhos das putas!, é o
grito do líder ordenando a matança. Então avançamos calmamente
contra aqueles viciados, encurralando-os em seu próprio beco.
Alguns, certamente mais lúcidos, tentam correr, mas a única chance
de escapar é vir em nossa direção.
Até chamaria isso de instinto de sobrevivência, mas é uma
estratégia um tanto suicida.
Após um minuto, a gritaria cessa. Restam alguns gemidos, então eu e
outro cara somos ordenados a finalizá-los. Os outros dois voltam
para o carro, com a intenção de trazê-lo para recolher os objetos
de valor e as drogas que restaram. Evidentemente, o sistema se
retroalimenta.
Não temos pressa. A vizinhança não vai chamar a polícia; deve até
estar nos agradecendo pela limpeza. Descarrego minhas últimas balas
e paro pra trocar o pente de munição. É então que assisto a cena
mais bizarra que já vi nesse meu mundo. Uma mão se esgueira por
entre o amontoado de corpos, mexendo-se com tanto empenho e força
que parece pedir ajuda apenas com aquele gesto. Olho pro lado, mas o
outro cara está preocupado demais em tentar achar algo de valor que
possa por no bolso antes que os demais apareçam. Lembro daquele
velho ditado…
Volto minha atenção àquela mão, que agora já é um braço
inteiro deslocando seus antigos companheiros. Quando a cabeça
aparece, puxa o ar com tanta força e ruidosamente que tomo um
pequeno susto. O outro cara surge ao meu lado, e não consegue se
conter.
Mas
que porra é essa?, quebra o
protocolo. Saca a arma.
Faço um gesto com a mão, pedindo pra que espere. No breu, a
silhueta de uma figura esquelética finalmente consegue se
desvencilhar dos corpos, se equilibra com alguma dificuldade e fica
parada há poucos metros de nós. Após uns segundos, avança em
nossa direção, cambaleante, arrastando um dos pés. O outro cara
empunha a arma, mas recua, a passos curtos, assim como faço.
Quando passa por um poste mal iluminado, aquele ser me causa
repugnância. Digo isso porque nunca vi nada parecido. E é
impossível distinguir seu gênero. A roupa mulambenta é o que menos
chama atenção. As escaras e feridas por toda a pele das pernas,
braços e rosto me chocam, mesmo eu já estando acostumado a lidar
com a escória no submundo.
Isso
aí parece um zumbi…, fala o
outro cara, entredentes, daqueles que a gente vê na TV.
É
pior. É real, contesto.
O cara então atira. Na perna, arrancando-a do corpo na altura do
joelho e fazendo aquele ser desabar.
Puta
que pariu, isso aí injetou tudo que encontrou daquela porra nova, a
russa…
Sei o que é – krokodil; mas não consigo falar, nem desgrudar os
olhos da cena: o ser apoia as mãos no chão, levantando o corpo com
dificuldade. Põe o joelho da perna que lhe restou no asfalto, e
segue o caminho se arrastando em nossa direção.
Que
loucura, cara! Que puta loucura!,
diz, eufórico.
Não me afasto mais. Espero-o se aproximar, e ele levanta uma das
mãos em minha direção. Seu rosto é uma massa disforme, mas a boca
aberta, e o som que sai dela, me representam um lamento – um pedido
de ajuda, talvez. Mas o que eu posso fazer?
Então um farol ilumina o rosto daquele ser, e o ronco do motor se
torna mais alto. Olho pra trás. Eles não vão parar. Eu e o outro
cara pulamos para o lado, alguns segundos antes de ouvir um arrastado
chio de freio. Junto a parede, ouço um tiro e, em seguida, uma
pancada seca.
Os
outros saem do carro, cada um tentando entender o que aconteceu. O
cara do lado do motorista observa o amontoado de ossos jogados alguns
metros à frente. Olha pra mim, como que cobrando uma explicação,
mas contorno o carro e paro ao lado do líder, que observa o outro
comparsa deitado sobre uma poça de sangue. Providência
divina, penso, e mexo no bolso
do cara, jogando pro líder uma correntinha que tinha sido
indevidamente apropriada.
Me afasto dali, sem nada dizer. Acabei de tomar minha decisão.
Essa
é sua escolha?, grita o líder.
Hesito
por um instante, mas não tenho medo. Uma rajada de tiros em minha
direção. Eu sigo, sem sentir nada. Providência divina,
me pergunto, e dobro a esquina. Minha visão escurece.
Foto:
Long Road To Ruin
– 53/365,
de Simon Wicks.
4 comentários:
Conto diferente, denso, tenso e impactante. Gostei muito.
Fico feliz que tenha gostado, Cinthia! Muito obrigado por seu comentário!
Minha intensão, com esse conto, ao utilizar elementos tão presentes em nosso cotidiano, é levar o leitor a reflexão.
Poderia ser um futuro distópico, ou mesmo pós-apocalíptico. Mas é um presente muito presente. Muito bom, Rodrigo!
Muito obrigado, Matheus!
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