O
visitante comum que percorra a galeria de retratos do Museu da
Presidência encontra o que espera: um enfileiramento de grandes
retratos de figuras sisudas, solenes, um pouco ameaçadoras até, dos
presidentes da República Portuguesa, durante o século XX. Essa é a
formulação a que o visitante está habituado e a que a magnitude do
cargo parece exigir.
Então,
surge-lhe o retrato de Mário Soares, que rompe com a lógica
hierática dos retratos e choca violentamente com as representações
anteriores. O retratado mostra os dentes, sorri, tem um ar bem
disposto e descontraído, parece contar uma anedota, falar para o
observador.
Muitos
visitantes e alguns críticos têm reprovado esta formulação do
retrato de alguém que foi Chefe de Estado e, embora reconhecendo a
bonomia do retratado, prefeririam um retrato mais austero. No fundo,
um Chefe de Estado é mais do que si próprio, é a figura da Nação,
e, se um anónimo se pode fazer retratar em pose informal, uma figura que
tenha exercido aquela alta responsabilidade deve, a bem da dignidade
dos símbolos da pátria — como o hino e a bandeira —, apresentar
maior compostura.
Embora
contrafeito, o visitante comum desculpará a irreverência, que
atribuirá a ideias modernistas do retratado. Sobressairá uma imagem
de homem portador de uma mentalidade arejada.
Mário Soares é uma figura incontornável da política portuguesa. Representou um papel importante na
organização de fações socialistas antes do 25 de Abril de 74 e
foi determinante no rumo da política do país no pós-25 de Abril.
Foi Primeiro-ministro e Presidente da República. É neste cargo que
é retratado por Júlio Pomar, para ficar representado na galeria dos
presidentes, tal como os anteriores. Tudo isto sabe, previamente, o
visitante avisado. Mas também sabe que, ao longo da História,
muitas obras de Arte, para além de leituras óbvias, podem manter
incógnito, debaixo dos olhos do espectador, algum “segredo” que
as revelasse e explicasse. De Júlio Pomar, em cujas obras já terá entrevisto mensagens escondidas, o visitante avisado só pode esperar desafios interpretativos. Por isso, aplica-se a analisar a
obra que tem perante si.
A
figura de Mário Soares é bem reconhecível no retrato, apesar de
não estar representada de forma naturalista. O rosto está tratado
com mais cuidado do que o resto do corpo. Reconhece-se o sorriso, a
testa alta e desimpedida, a forma especial dos olhos, as bochechas. O
rosto não é o de um retrato típico, mas não deixa de refletir a
postura de bonomia de Mário Soares, que olha o interlocutor nos
olhos, sem preconceitos. Apresenta a atitude de bom conversador,
disponível para o gracejo e para se entusiasmar com o discurso do
outro. O braço direito gesticula animadamente, como um orador
inflamado. Mas sorri. Parece ocupar uma posição sobranceira ao
interlocutor. Inclina-se para a frente, em atitude de aceitação e
entendimento com o outro. Traz à memória a estátua do poeta
Chiado, instalada no largo do mesmo nome. Só que, em vez de um
banquinho, Soares está instalado numa cadeira muito especial.
Relacionando a figura, a função e a forma da cadeira,
reconhece-se-lhe o caráter marcadamente associado ao poder, devido
às duas cabeças de leão que ostenta nos braços. São sinais não
casuais.
Todos
os poderosos gostam de se associar ao rei da selva. O poder usa o
retrato como mais uma ferramenta de afirmação e legitimação. A
envolvência do retratado afirma o seu poder, o que a
expressão fisionómica nem sempre consegue.
O
quadro vive, sobretudo, da mancha — no fundo, na roupa, até no
rosto. A linha surge de maneira pontual para marcar alguns elementos
mais caracterizantes — os olhos, a boca, a linha de delimitação
das bochechas. Nos outros pontos onde é utilizada, serve mais de
elemento para texturar áreas do que para desenhar fielmente. Até
nas mãos a linha perde caráter definidor.
De
que falará ele com tanto entusiasmo? É um político, um socialista.
A mancha rosa que espalha com a mão direita não deixa dúvidas. Mas
trata-se de uma mancha informe, um esboço, uma ideia. Fala dela sem
fazer um desenho rigoroso. É uma ideia que não se sabe como pôr em
prática, um sonho, uma utopia. Lido assim, o retrato fala.
E
a mão esquerda, o que faz? Aponta rigidamente para si próprio.
Contrasta fortemente com a direita, que é mais natural em alguém que
fala para outrem. Esta mão esquerda está colocada numa posição
estranha, inesperada. Conterá alguma pista para leituras
alternativas?
Então,
reparando com atenção, percebem-se dois ou três riscos curvos à
frente da ponta do indicador da mão esquerda, recurso muito utilizado
pela banda desenhada para sugerir movimento. O dedo abana
lateralmente. Indica um “não”. O visitante avisado, em alerta,
recupera instantaneamente uma frase marcante do PREC: “Olhe que
não! Olhe que não!”
O
olhar descobre agora que a cor da manga esquerda é diferente da do
restante fato. A convicção instala-se: o aparente braço esquerdo
de Soares, não é um braço dele, é de Álvaro Cunhal. O retrato,
mais que marcar para a posteridade a fisionomia de Mário Soares,
lida pelo artista, plasmou um momento marcante da história de Soares
e do país, quando os dirigentes dos dois partidos mais poderosos se
enfrentaram perante as câmaras da RTP em 7 de novembro de 1975 —
faz agora 40 anos. Soares acusava Cunhal de pretender a instalação
no país de um regime ditatorial comunista, ao que este respondeu
daquela forma que entrou nos ditos populares e que Pomar — o
maroto do Pomar! — fixou em pintura. O quadro fala.
Soares
foi muito importante em vários aspetos da vida política do país,
mas vencer o Partido Comunista em 75 foi a sua coroa de glória, pela
qual foi glorificado interna e externamente. Não custa admitir que o
próprio Soares goste de se reconhecer e ser imortalizado naquele
episódio, se é que tomou conhecimento ou consciência dele no
quadro. Como não? Pomar e Soares são amigos desde que, presos pela PIDE, foram companheiros de cela em Caxias, em 1947.
Pomar
encostou Soares ao seu lado esquerdo, para que o seu braço esquerdo
ficasse invisível. Em sua substituição colocou o antebraço esquerdo
de Cunhal. Em termos de organização espacial está genialmente
estruturado, e em termos ilusionísticos funciona.
O
visitante avisado, satisfeito com um primeiro aparente êxito
hermenêutico, sente-se tentado a enveredar por muitas outras
especulações sobre a obra visitada. Soares é poder no momento da
pintura e é poder no momento do episódio: dominava o governo e boa
parte das forças armadas. O braço direito da cadeira parece
cercá-lo. Ou defendê-lo. As cabeças de leão estão tratadas de
forma bem diversa: a do braço direito é bastante naturalista, como
o gosto naturalista da direita social; a do braço esquerdo, muito
esquemática, faz lembrar o modernismo estético das correntes de esquerda. O rosto do leão
da direita faz lembrar os rostos severos, bigodudos, dos militares da
velha guarda, a que não falta um reflexo vítreo de monóculo; o da
esquerda, as representações cubistas.
A
escolha da cadeira com dois leões nos braços não foi inocente e o
desigual tratamento de cada cabeça indica, seguramente, um
enquadramento do retratado, talvez político, talvez social, talvez
global. Mantém-se destacado da direita conservadora e da esquerda
utópica. Talvez apenas possibilidades de que pode dispor, em que se
pode apoiar, mas não usa. O seu não-alinhamento fica evidenciado. O visitante avisado trava agora a deriva especulativa ao reparar no vermelho inquestionável do braço direito da cadeira. Terá sido usada a referência topológica da Assembleia da República? Será uma referência internacional? Ou nem tudo tem de ter simbologias?
Parece
ter havido a intenção de mostrar uma faceta de relação
descontraída com o poder, até para contrastar com a pose hirta do
seu antecessor e rival Ramalho Eanes. No entanto, parece poderem lá
ser lidas fortes referências ao poder e às suas lutas políticas,
especialmente o episódio televisivo de 7 de novembro de 1975. E o
que é que o maroto do Pomar nos mostra ainda — aceites as leituras anteriores —, ao organizar os
elementos formais daquela maneira? Que Soares, mesmo no auge da luta
política, não argumenta para o seu adversário, não se vira para
ele; exibe-se para a câmara de televisão, para os espectadores,
para os eleitores. Acentua o seu lado solar, vaidoso, teatral. Neste sentido, o retrato de Soares, para além da representação fisionómica inconfundível e da fixação de um episódio político marcante, faz uma leitura psicológica do retratado. Maior completude não se pode esperar. Só lhe falta falar? Nem isso! Este retrato comunica muita coisa — praticamente, fala.
O
visitante avisado acredita que esta obra apresenta sinais de estranheza,
como outras tantas pistas a serem investigadas e talvez desvendadas,
no entanto, toma consciência das limitações das interpretações,
como áreas de leitura incerta, para cujo conhecimento talvez só
valha uma atitude de escuta silenciosa da obra, que pode ou não
deixar intuir ressonâncias, se não de verdade, pelo menos de
verosimilhança.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Júlio
Pomar, Presidente
Mário Soares,
1992.
Óleo
sobre tela, 174 x 140 cm.
Lisboa,
Museu da Presidência da República.
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7 comentários:
Gostei muito de ler.
E eu gostei de saber. Não se escreve para agradar, mas fica-se satisfeito quando agrada.
Uma pequena maravilha para todos aqueles cuja actividade é a de trabalharem para o "boneco".
Parabéns.
Obrigado, Carlos Alberto! Muitas vezes só a opinião dos outros é que nos faz perceber o grau de qualidade do que escrevemos.
Fiquei emocionada ao ler.Que bem escrito.Obrigada Joaquim Bispo
Nice post thank you Chris
Dard Shayari
Hate Shayari
Shubh Kamnaye
Anniversary SMS
Karwa Chauth SMS
Navratri SMS
Alone Shayari
Rajnikant SMS
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