por Wellington Souza
Senta-se e abre o livro.
“Na escola arrebentada onde experimentou pela primeira vez a segurança do poder, a poucos metros do quarto onde conheceu a incerteza do amor, Arcadio achou ridículo o formalismo da morte. Realmente não se importava com a morte, e sim com a vida, por isso a sensação que experimentou quando pronunciaram a sentença não foi uma sensação de medo, mas de nostalgia. Não falou enquanto não lhe perguntaram qual era a sua última vontade.*”
Marca a página e fecha o livro.
Sai, atravessa a sala até a cozinha, enche um copo com água da torneira. A essa hora pouco importa as impurezas e precipitados. Na mesa de centro da sala havia ainda quinze, dos vinte Diazepans da cartela. Leva mais um à boca, seguido de um gole de água; mais um e outro gole, por fim o derradeiro e devolve o copo à mesinha de centro. Conta 3:23 horas no relógio de ponteiro.Volta à escrivaninha, senta e coloca café, que está forte, sem açúcar e não mais quente, na caneca de louça. Bebe de uma só vez. Escreve: “Já no avião/ sem volta e aflito/ olha para os lados/e seus colegas pularam/ e agora é a sua vez./ Pula./ é mágico o vôo liberto/ o forte vento é mágico/ o mundo, enfim sob ele/ é mágico./ Puxa a corda do pára-quedas:/ Da sua mochila saem panelas/ talheres/ conchas/ toalha de mesa/ cesta de piquenique/ um botijão de gás pequeno./ Atônito,/ele olha para o desenhista!”. Sente uma tontura, de onde sai o título: “Morte animada”.
Deixa de lado o rascunho. Abre o livro, mas não consegue focar as palavras com clareza. Mesmo assim segue lendo.
“— Digam à minha mulher — respondeu com voz bem timbrada — que ponha na menina o nome de Úrsula. — Fez uma pausa e confirmou: — Úrsula, como a avó. E digam-lhe também que se o outro nascer homem, que lhe ponham o nome de José Arcadio, mas não pelo tio, e sim pelo avô.
Antes que o levassem ao paredão, o Padre Nicanor tentou assisti-lo. “Não tenho nada de que me arrepender”, disse Arcadio, e se pôs às ordens do pelotão depois de tomar uma xícara de café preto. (...) “Ah, caralho!”, chegou a pensar, “me esqueci de dizer que se nascesse mulher pusessem Remedios.”Então, numa só pontada dilacerante, voltou a sentir todo o terror que o atormentara na vida. O capitão deu a ordem de fogo. Arcadio mal teve tempo de estufar o peito e levantar a cabeça, sem entender de onde fluía o líquido ardente que lhe queimava as coxas.
— Cornos! — gritou. — Viva o Partido Liberal!*”
Suas pestanas estão pesadas. Não agüenta mais o sono, para não dizer o efeito da droga. Tenta levantar-se. Apóia na escrivaninha, mas seus braços logo cedem ao peso do corpo. O direito se flexiona batendo o cotovelo e desliza, deixando o rascunho, canetas e lapiseira caírem no chão. Bate a testa na madeira, mas o impacto é leve. Volta a sentar, já sem forças no corpo, inerte. Tentar respirar, mas encontra dificuldades. Abre a boca e um filete de baba mancha o livro. Está ofegante, como que se afogando no ar.
Pensa em tomar a última dose para remediar o fim da tortura. Levanta abruptamente e cambaleia até a cama, onde o tronco e os membros superiores conseguem chegar, mas os inferiores não. Desmaia, então, com metade do corpo na cama e um braço, o outro está suspenso.
Inanimado, passará nessa posição quase dois dias.
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Acorda numa tarde que não reconhece, com dúvidas sobre sua identidade e seu meio. Forte dor de cabeça e de barriga. Deita na cama e olha para o teto. Nada lhe vem à cabeça. Calcula se conseguirá andar, mexendo a perna. Senta e vê uma mancha de saliva na cama. Levanta escorando nas paredes e escorado chega até a cozinha. Prepara um copo de água com sal e segue, assim, até o banheiro. Bebe a água e vomita uma bile amarela, seguido de muitas tentativas que só fazem barulho, mas nada evacuam. Olha o espelho e encara uns outros olhos fúnebres.
Com o pulso bate no espelho, mas sua estrutura está fraca como seu espírito sempre foi. Concentra-se. Inclina o corpo para trás e bate com mais força. Quebra. O machucado no pulso é superficial. Ao arrancar um caco do espelho quebrado fere o dedo. Pega a lasca de espelho e corta um pulso, troca a lasca de mão e faz um corte mais profundo no outro. Perfura novamente o primeiro. O sangue já tinge parte do banheiro.
Caminha cambaleando até a janela da sala, onde ajoelha e se apóia, deixando os braços para fora. Repousa a cabeça no parapeito. O sangue escorre pelas mãos, pinga lá em baixo onde formará uma pequena poça.
Queria olhar o sol da tarde quente, mas ele está sobre as nuvens.
Inspira. Enfim, não sente mais medo da vida.
*Trechos do livro: Cem Anos de Solidão/ Gabriel García Márquez; tradução de Eliane Zagury – 49° Ed. – Rio de Janeiro: Record 2001.
Publicado originalmente no blog do autor: hipeR-Link
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
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por well souza
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