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terça-feira, 17 de novembro de 2009

E faz de conta...

Miguel de Unamuno
trad.: Henry Alfred Bugalho

A Miguel, o herói de meu conto, um haviam lhe pedido. Herói? Herói, sim! E por quê?— perguntará o leitor. Pois, primeiro, porque quase todos os protagonistas dos contos e dos poemas devem ser heróis, e isto por definição. Por definição? Sim! E se não, vê-lo-emos.
P. — Que é um herói?
R. — Alguém sobre o qual se pode escrever um poema épico, um epinício, um epitáfio, um conto, um epigrama, ou mesmo uma manchete ou uma mera frase.
Aquiles é herói porque fê-lo Homero, ou quem quer que fosse, ao compor a Ilíada.
Somos, pois, os escritores — ó nobre sacerdócio! — quem para nosso uso e satisfação criamos os heróis, e não haveria heroísmo se não houvesse literatura. Isso de heróis ignorados é uma lengalenga para consolo dos simplórios. Ser herói é ser cantado!
E, ademais, era herói o Miguel de meu conto porque lhe haviam pedido um. Aquele a quem se lhe pede um conto é, pelo mesmo fato de sê-lo pedido, um herói, e aquele que o pede é outro herói. Heróis os dois. Era, pois, herói o meu Miguel, a quem Emilio lhe pediu um conto, e era herói o meu Emilio, que pediu o conto a Miguel. E assim vai avançando este que escrevo. Quer dizer,

Sem perceber, seguem os dois adiante.

E meu herói, diante das folhas brancas e amarelecidas, olhos fixos nelas, a cabeça entre as palmas das mãos e cotovelos sobre a escrivaninha de trabalho — e com esta descrição me parece que o leitor estará vendo-o muito melhor do que se o visse ilustrado —, dizia para si: “Bem, sobre o que escrevo agora o conto que me pedem?” Vixe, escrever um conto alguém que, como eu, não é contista de profissão! Porque há o romancista que escreve romances, um, dois, três ou mais ao ano, e o homem que os escreve quando eles brotam de si. E eu não sou um contista!...
E não, o Miguel de meu conto não era um contista. Quando, por acaso, fazia-os, sacava-os, ou de algo que, visto ou ouvido, havia ferido-lhe a imaginação, ou das mais profundas de suas entranhas. E isto de sacar contos do fundo das entranhas, isto de converter em literatura os mais íntimos tormentos do espírito, as mais espirituais dores da mente, ó, sobre isto!... Sobre isto, tanto já falaram os poetas líricos de todos os tempos e países, que nos resta já muito pouco por dizer.
E logo os contos de meu herói teriam para os leitores habituais de contos — os quais formam uma classe especial dentro do gênero dos leitores — um gravíssimo inconveniente, que é o de não haver argumento, o que se chama argumento. Dava muito mais importância às pérolas do que ao fio em que estão inseridas, e para o leitor de contos o importante é a ação, assim com “a”, e não ilação, com “il”, como nos esforçamos em escrever, os mais ou menos latinistas que pensamos ser, e ensinar que este vocábulo deriva de infero, fers, intuli, illatum. (Não se esqueçam que sou um catedrático, e por sê-lo meus filhos comem, mesmo que, vez ou outra, merendem de um conto perdido)

E estou na metade de outra página.

Para o herói do meu conto, o conto não é senão um pretexto para observações mais ou menos engenhosas, fragmentos de fantasia, paradoxos, etc., etc. E isto, francamente, é rebaixar a dignidade do conto, que tem um valor substantivo — creio que se diz assim — em si mesmo e por si mesmo. Miguel não cria que o importante era o interesse da narração e que o leitor fosse dizendo para si mesmo a cada momento: “E agora o que virá?”, ou: “E como isto acabará?" Sabia, ademais, que há quem começa um destes romances enormemente interessantes, vai ver nas últimas páginas o desfecho e já não o lê mais.
Por isto, acreditava que um bom romance não deve ter desfecho, como não tem, ordinariamente, a vida. Ou devia ter dois ou mais, expostos em duas ou mais colunas, e que o leitor escolha entre aquele que mais o agrade. O que é soberanamente arbitrário. E este Miguel meu era o mais arbitrário que dar-se possa.
Em um bom conto, o mais importante são as situações e as transições. Sobretudo, estas últimas. Ó, as transições! E a respeito daquelas, é o que dizia o famoso melodramaturgo d’Ennery: “Em um drama (e quem diz drama, diz conto), o importante são as situações; componha você uma situação patética e emocionante, e pouco importa o que nela digam os personagens, porque o público, quando chora, não ouve”. Que profunda observação esta de que o público, quando chora, não ouve! Um sujeito que havia sido apontador do grande ator Antonio Vico me dizia que, representando este uma vez A morte civil, quando entre dois assentos fazia que morria, e as senhoras o olhavam com binóculos para cobrir com eles as lágrimas e os cavalheiros fingiam que assoavam para enxugá-las, o grande Vico, entre soluços estertóricos e frases entrecortadas de agonia, estava dando a ele, ao apontador, umas tarefas para a contadoria. O que precisa é saber fazer chorar!
Sim; aquele que num conto, como num drama, sabe fazer chorar ou rir, pode nele dizer o que lhe apetecer. O público, quando chora ou quando ri, não se inteira. E o herói de meu conto tinha a perniciosa e petulante mania de que o público — seu público, é claro! — se inteirasse do que ele escrevia. Haja visto pretensão semelhante!
Permita-me o leitor que interrompa um momento o fio da narração de meu conto, faltando ao preceito literário da impessoalidade do contista (veja a Correspondance de Flaubert, em qualquer de seus cinco volumes Oeuvres completes, Paris, Louis Conard, libraire-éditeur, MDCCCXX), para contestar essa pretensão ridícula do herói de meu conto de que seu público se interesse pelo que ele escreve. É que não sabia que a maioria das pessoas lê para não se inteirar? Fartos estão cada um com suas próprias penas, seus próprios pesares e cavilações para que venham lhes enfiar outras! Quando eu, de manhã, à hora do chocolate, pego o jornal do dia, é para me distrair, para passar o tempo. E conhecido é o aforismo daquele sábio granadino: “A questão é passar o tempo”; ao que outro sábio, bilbaíno este, e que sou eu, acrescento: “Mas sem adquirir compromissos sérios”. E não há meio menos comprometedor de passar o tempo do que ler o jornal. E se apanho um romance ou um conto não é para que, por reação, suscite minhas profundas preocupações e minhas penas, senão para que me distraia delas. E, por isto, não me inteiro do que leio, e até leio para não me inteirar...
Mas o herói de meu conto era um petulante que queria escrever para que se inteirassem e, é natural, assim não pode ser, não lhe resultava do que escrevia senão paradoxos.
Que é isto um paradoxo? Ah!, eu não sei, mas tampouco sabem os que falam deles com certo desdém, mas ou menos fingido; mas nos entendemos, e basta. E precisamente o chiste do paradoxo, como o do humor, firma-se somente em haver quem fale deles e saibam o que são. A questão é passar o tempo, sim, mas sem adquirir compromissos sérios; e que compromisso sério se adquire acusando algo de paradoxo, sem saber o que ele seja, ou tachando-o de humorístico?
Eu, que como o herói do meu conto, sou também herói e catedrático de grego, sei o que etimologicamente quer dizer isto de paradoxo: Da preposição para, que indica lateralidade, o que vai ao lado ou se desvia, e doxa, opinião, e sei que entre paradoxo e heresia há apenas diferença; mas...
Mas o que tem tudo isto a ver com o conto? Voltemos, pois, a ele.
Havíamos deixado nosso herói — começando sendo-o meu e já é teu, leitor amigo, e meu; isto é, nosso — com os cotovelos sobre a mesa, com os olhos fixos nas folhas brancas, etc. (veja a descrição precedente) e dizendo para si: “Bem, sobre que escrevo eu agora?...”
Isto de pôr-se a escrever, não precisamente porque se tenha encontrado assunto, senão para encontrá-lo, é uma das necessidades mais terríveis a que se veem expostos os escritores fabricantes de heróis, e, por conseguinte, heróis eles mesmos. Por que qual é o heroísmo supremo, senão criar heróis, cantá-los? É o herói quem cria seu criador, opinião que mantenho muito brilhante e profundamente em minha Vida de Don Quixote e Sancho, segundo Miguel de Cervantes Saavedra, Madri, librería de Fernando Fe, 1905 — e isto sirva, de passagem, como propaganda —, obra na qual sustento que foi Dom Quixote aquele que criou Cervantes e não este a aquele. E a mim quem me criou, pois? Neste caso, não cabe dúvida que foi o herói do meu conto. Sim, eu não sou senão uma fantasia do herói de meu conto.
Prossigamos? Por mim, leitor amigo, até onde você quiser; mas temo que isto se converta no conto que nunca há de acabar. E assim é a vida... Ainda que não! Não! A vida se acaba.
Aqui seria uma boa ocasião, com este pretexto, para dissertar sobre a brevidade desta vida perecedora e a vanidade de seus êxitos, o que daria a este conto um certo caráter moralizador que o elevaria além do nível destes outros contos vulgares que só servem para divertir. Porque a arte deve ser edificante. Vou, portanto, acabar com uma

Moral da história. Tudo se acaba neste mundo miserável: Até os contos e a paciência dos leitores. Não vou, pois, abusar.

Fonte: http://www.scribd.com/doc/6808126/Unamuno-Miguel-de-Tres-Cuentos

***

Biografia
Miguel de Unamuno y Jugo (29 de Setembro de 1864 – 31 de Dezembro de 1936) foi um poeta e filósofo espanhol.

Nasceu em Ronda del Casco Viejo (Bilbau) e faleceu em Salamanca. Considerado a figura mais completa da Generación del 98, um grupo constituído por nomes como Antonio Machado, Azorín, Pío Baroja, Ramón del Valle-Inclán, Ramiro de Maetzu, Angel Ganivet, entre outros.

Estudou na universidade de Madrid onde tirou o curso de Filosofia e Letras e mais tarde obteve a cátedra de grego na Universidade de Salamanca. Dez anos depois foi nomeado reitor da universidade salmantina.

Foi conhecido também pelos sucessivos ataques à monarquia de Afonso XIII de Espanha. De 1926 a 1930 viveu no exílio, primeiro nas Ilhas Canárias e depois em França, de onde só voltou depois da queda do general Primo de Rivera. Mais tarde o General Francisco Franco afastou-o novamente da vida pública, devido a críticas duras feitas ao General Millán Astray, acabando por passar os seus últimos dias de vida numa casa em Salamanca.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_de_Unamuno

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2 comentários:

O acordo ortográfico tem os seus inimigos, muitas vezes por muito compreensíveis razões. Tirar o acento ao herói, esse apêndice tão viril que faz do herói, herói – repare-se que heroína não o tem no mesmo sítio (machismo dixit) – não é, no entanto, algo de que o possamos acusar. Ao acordo. Herói mantém o acento no novo acordo ortográfico, valha-nos isso. O problema, neste texto, vai ser montar uma operação cirúrgica colectiva de tal envergadura (!) que permita reimplantar os 28 acentos em outros tantos heróis. E uma enfermaria completa para convalescença.
:) Estava inspirado.

Que bom que você me avisou, Joaquim, porque eu estava achando uma aberração escrever "herói" sem acento, mas tudo pela "correção".

Já vou arrumar!

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