Todos os anos, em janeiro, no auge do inverno nova-iorquino, centenas de pessoas se reunem para uma estranha brincadeira: entrar no metrô sem calças. Na parte de cima, homens e mulheres vestem o que habitualmente usam, paletó, blusa, casaco, ou moletom, no entanto, na parte de baixo, somente cuecas e calcinhas, com pernas à mostra.
Da primeira vez que vi isto ocorrer, causou um certo estranhamento, mas, no metrô lotado, eu era o único que parecia estar notando algo de errado. Todos os demais nova-iorquinos ignoravam, ou fingiam ignorar, a ausência das calças em alguns passageiros. Era como se fosse um dia corriqueiro, como qualquer outro.
Semana passada, no East Village, um homem, vestido de mulher, corria em círculos com uma rena de pelúcia em mãos. A maioria das pessoas simplesmente passava por ele, fingindo não vê-lo, apenas um ou outro dava uma risadinha, ou parava para tirar uma foto
Se era um louco, pouco importa, o extraordinário era a reação das pessoas, a indiferença delas.
O mote dos EUA, arrotado aos quatro ventos, é liberdade. Em vários aspectos, é uma lema puramente retórico, para justificar invasões ao Iraque ou Afeganistão, mas em outros, é de fato o ideal pelo qual os americanos vivem: liberdade acima de tudo.
Para um americano, pouco importa como você se veste, o que você faz, com quem você anda, o que você come. Cada um é responsável por seus próprios atos, livre para fazer suas próprias escolhas e ninguém tem nada a ver com isto. Ninguém.
Isto não significa que não haja preconceitos, mas externá-los chega a ser quase antiético.
Como os americanos reagiriam a uma universitária desfilando com um vestido rosa curtíssimo?
Difícil dar uma resposta categórica, mas talvez com a mesma indiferença com que tratam os passageiros sem calças no metrô, ou o louco trajado de mulher na Astor Place, com indiferença, com naturalidade.
E é neste momento em que revelamos toda nossa hipocrisia, nosso atraso, nossa moralidade retrógrada.
Estamos tão habituados à exposição do corpo, à reificação da mulher e do sexo, no baile funk, no carnaval, no fio dental na praia, no concurso "Menina da Laje", na protagonista da novela posando para a "Playboy", na imagem do corpo vendida e veiculada em todos os outdoors, nas revistas, na TV, nos jornais de quinta.
Consumimos a todo o momento o culto ao corpo, ao sexo, à beleza a qualquer custo e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, repudiamo-lo quando se apresenta fora dos meios onde ele é convencionalmente aceito.
Talvez sejam os tabus, estas normais sociais que regulam o permitido e proibido, que estejam no cerne desta questão, que expliquem porque aceitaríamos a Geyse e seu vestido rosa em certas circunstâncias, mas a repudiariamos em outras.
Mas nada é tão simples, e tabus não explicariam porque milhares de alunos, supostamente esclarecidos, posto que estão numa Universidade, se reuniriam para insultar uma colega, apenas por causa do que ela veste. Se tabu, ou machismo, pode estar na origem do ocorrido, as proporções do evento sugerem outro fator.
"Eu comecei a gritar, mas nem sabia o que estava acontecendo. Foi engraçado", disse um estudante da UniBan, numa das reportagens que assisti. O ser humano, como uma criatura social, tende a reproduzir os atos dos seus pares como estratégia de sobrevivência: se a maioria faz, então deve ser o melhor a ser feito. Enquanto que este comportamento se justifica em várias ocasiões e nos ajuda coletivamente, em muitas situações apenas reforça uma injustiça.
No livro "A Sabedoria das Multidões", há um exemplo esclarecedor - uma mulher que deseja se suicidar jogando-se de uma ponte causa um enorme congestionamento. Algumas pessoas, para se livrarem logo deste incômodo, começam a gritar, "Pula! Pula!". Em pouco tempo, centenas de motoristas nervosos reforçam o coro e a mulher se joga para a morte.
Duvido que qualquer uma daquelas pessoas, individualmente, desejasse a morte da mulher, mas coletivamente, de modo errôneo, os motoristas julgaram que, se ela se jogasse logo no rio, o tráfego seria normalizado.
Às vezes, precisamos nos esconder sob a máscara da coletividade para expormos nossa intolerância. Somente assim, sentimo-nos seguros para demonstrar a nossa profunda ignorância.
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