Ontem morreu Joaquim Maria. Todos o conheciam, ele dispensa apresentações, homem público, outrora amado pelos nobres, idolatrado pelo populacho.
A vida de Joaquim Maria foi recheada de dificuldades, mas ele venceu-as todas e se tornou um símbolo para nossa nação, poucos indivíduos representaram tanto o espírito de seu povo e de sua época como Joaquim Maria.
E o que o tornou tão célebre foram suas idiossincrasias. Ainda menino elas começaram a se manifestar, primeiro, de maneira discreta, mas após a tutela com o místico e sábio Roberto Alberto Norberto, Joaquim Maria aprendeu a controlar seus comportamentos e imediatamente se tornou um notável.
Seus atributos eram maravilhosos, mas o principal deles era sua capacidade de dialogar com qualquer indivíduo do planeta, sobre qualquer assunto. Se se encontrava com uma criança, Joaquim Maria parecia retroceder em anos, falava, gesticulava e até brincava como se criança fosse; mas se o interlocutor fosse um homem de ciência, ou um matemático, ou um engenheiro naval, Joaquim Maria falava sobre tais assuntos com propriedade, como se possuísse o mesmo conhecimento, como se houvesse cursado todas as faculdades e lido todos os livros de tais matérias.
Se conversava com uma mulher, Joaquim Maria afinava a voz, quebrava o pulso e fofocava sobre a vizinhança; se fosse com um mendigo, em pouco tempo também começava a esmolar, se fosse um capitalista, logo recitava de cor as cotações das ações e quais eram os melhores investimentos.
Certa vez, ao debater com um astrônomo, Joaquim Maria descobriu um novo planeta; outra, discutindo com um filósofo, Joaquim Maria provou a existência de Deus; escreveu três livros após ter se encontrado com autores renomados, duas óperas ao se reunir com compositores e pintou, durante uma sessão particular com o artista da corte, um dos quadros mais visitados da Galeria Real.
Podia manusear qualquer arma de fogo se na presença de militares, dançava como um profissional se dançarinos o cercassem. O mais impressionante, contudo, era o incompreensível dom de falar os idiomas dos interlocutores: russo ao conversar com um russo, ou alemão com um alemão, ou polonês com um polaco, ou hebraico com um judeu.
Existiam boatos de que até o comportamento de animais Joaquim Maria era capaz de reproduzir e testemunhas garantem que ele já havia atacado um carteiro na companhia de cães e que, outra vez, durante a visita ao zoológico, a polícia teve grandes dificuldades para retirá-lo dos galhos duma árvore ao lado da jaula dos macacos.
Os sábios do reino então se propuseram uma missão: descobrir o verdadeiro Eu de Joaquim Maria. Isolaram-no completamente numa sala espelhada e o observaram por semanas. No entanto, Joaquim Maria não esboçava nenhum tipo de comportamento, apenas permanecia sentado, olhando seu próprio reflexo. Mas num dia, subitamente, ele pulou da cadeira e começou a abanar os braços e a correr, em ziguezague, pela sala. Foi quando constataram que uma mosca havia se infiltrado no cômodo.
Mas ninguém imaginou que um dom tão extraordinário seria a causa da própria desgraça de Joaquim Maria. Sem nenhuma explicação, inadvertidamente, Joaquim Maria se tornou uma pessoa normal, como outra qualquer.
Quer dizer, mais ou menos...
Durante todos os anos em que Joaquim Maria não passou dum replicante, de algum modo inexplicável, ele também havia tido acesso a todos os pensamentos mais secretos das pessoas com as quais havia conversado. Joaquim Maria sabia de tudo, desde os detalhes mais sórdidos até as conjeturas mais intrincadas.
Joaquim Maria decidiu que tanto conhecimento deveria ser compartilhado e, num intervalo de três meses, escreveu um livro expondo tudo isto. Mas Joaquim Maria, agora repersonificado, era um crítico inclemente da sociedade, talvez o mais satírico de todos os tempos, um comediógrafo arguto e cruel da vida real.
Em seu livro, ele difamava desde o Imperador até a prostituta, do general ao bobo da corte. Contava tudo, sem censura, sem dó, nem piedade.
É óbvio que Joaquim Maria criou inimigos poderosos e tudo que se falava à boca pequena era que o queriam morto.
Então, ontem à noite, encontraram-no enforcado em seu gabinete.
O comissário da polícia afirmou que não investigará o crime, pois Joaquim Maria havia contado no livro sobre o caso extraconjugal que ele mantinha com um estivador; o Imperador se recusou a comentar o crime; não havia testemunhas; ninguém, a não ser eu, velho amigo de Joaquim Maria, compareceu ao sepultamento deste gênio de nossa época.
Escrevo este relato para que a memória dele não se apague, e cito o primeiro parágrafo da obra que tornou Joaquim Maria o inimigo público número um, após ter sido o maior expoente do país:
Contar mentiras é perigoso,
Mas falar a verdade pode ser fatal.
terça-feira, 10 de novembro de 2009
O Incrível Joaquim Maria
por Henry Bugalho
4 Comentários
4 comentários:
Adorei o final, especialmente o primeiro parágrafo da obra de Joaquim Maria. É uma das mais puras verdades.
Boa, Henry!
Uma graçinha esse seu jeito de escrever ..:Adorei o trecho " Quer dizer ....mais ou menos....."Tive a sensação de que estava conversando com vc numa esquina qualquer de um dia qualquer. Amei seu estilo literário natural e belo como as coisas simples da vida.
Sua fã ou fan ?
desde hoje.
Marrocos,12/11/fim do mundo
demajewsky@hotmail.com
lindíssimo
Texto excelente, H. Joaquim Maria tá bombando nessa edição. Por pouco, não postei um texto dele em "Autor e Língua Portuguesa"...
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