Ao sair do cemitério sentiu uma pontinha
de irritação ao ver que o autocarro ainda não chegara, mas que prontamente
abafou. Não gostava de se enervar com coisas fora do seu controlo e a verdade é
que os transportes andavam cada vez mais incertos. Pelo menos havia alguém na
paragem e a Dona Aurélia não perdeu tempo, metendo imediatamente conversa. Em
minutos ficou a saber que a desconhecida da paragem viera ver a campa de um
irmão falecido há anos, que não vivia em Lisboa e que viera não de visita mas
para um tratamento médico impossível de fazer na sua vila. Foi quase uma pena
ver chegar o autocarro, interrompendo-lhes a cavaqueira, mas só em caso de
força maior abdicava do seu lugar favorito, um dos assentos individuais o mais
à frente possível.
Dois autocarros e algumas centenas de
metros a pé depois estava finalmente na sua rua, parando apenas na pastelaria local
para o seu miminho diário. Desta vez escolheu um queque, que pareceu fazer-lhe
olhinhos de dentro da montra. Com o embrulho dentro da volumosa carteira foi
finalmente para casa para ver os seus programas favoritos, jantar a sua papa e bolo
e deitar-se cedo. Para se levantar cedo, cuidar da casa, almoçar e ir logo para
o cemitério.
E repetir todo o programa no dia seguinte.
A Dona Aurélia acreditava piamente que uma vida regrada era uma vida bem
vivida. Em vida do marido nem sempre pudera satisfazer esse seu gosto pela
rotina, fora certamente um bom homem mas muito dado a surpresas e improvisos,
sempre a mexericar em experiências sobre tudo e mais alguma coisa e a levá-la em
saídas e passeios de improviso. Agora que estava só podia expandir-se à vontade,
sabendo que a única surpresa diária era o mimo que comprava no regresso do
cemitério e que passava a um café tomado numa pastelaria junto aos portões ao
domingo, dia de fecho da pastelaria da sua rua.
Nunca tendo tido filhos e sem família em
Lisboa, os mortos eram a sua companhia constante, cuidando de várias campas de
pessoas sem família ou amigos que fora conhecendo no cemitério e a quem levava
sempre um vasinho com uma planta bonita cultivada por si — nada das porcarias
em plástico que via em inúmeros túmulos — e uma velinha que mantinha
religiosamente acesa enquanto rezava umas orações.
Achava que o pior que podia acontecer na
vida era morrer sem ter quem chorasse por nós ou cuidasse dos nossos restos
mortais. Por isso já organizara tudo para vir a ser enterrada numa vilória na
província onde vivia uma prima afastada a quem deixava os seus parcos haveres a
troco de lhe cuidar da campa no cemitério onde tinha os pais e uma filha que
falecera jovem num acidente de carro.
A vizinhança achava um pouco bizarra essa
sua obsessão com a morte, mas como era sempre tão simpática com todos, sempre
tão interessada nos problemas, doenças e acontecimentos felizes de toda a gente,
acabavam por encolher os ombros às visitas diárias ao cemitério onde passava
uma boa parte da tarde. O consenso geral é que tinha de ocupar o tempo com
alguma coisa e mais valia isto do que andar por aí a espalhar boatos
maldizentes como algumas que podiam citar...
Foi durante a ronda que sempre fazia antes
de se dedicar aos “seus” mortos que viu pela primeira vez João Gonçalo junto a
uma campa nova. Estivera ausente uns dias devido a uma forte gripe, tendo pois
falhado a cerimónia, mas pelas parcas flores sobre a campa, restos óbvios de um
enterro, via-se que fora alguém com poucos conhecidos e familiares.
Se tivesse estado presente teria arranjado
maneira de lhe falar, quanto mais não fosse para lhe dar os pêsames partindo
depois para um discreto interrogatório sobre o ou a falecida, mas tendo perdido
o evento principal optou por passar em frente sem nada dizer. Quem sabe se não
seria um dos muitos que apareciam uma vez no cemitério e nunca mais lá punham
os pés?
Mas não, na semana seguinte ali estava ele
novamente. E na seguinte também.
Na terceira semana achou que chegara o
momento de travarem conhecimento, uma vez que era o único “cliente” habitual
com quem não falava. Um pequeno aceno ao aproximar-se, uma paragem na campa ao
lado — uma idosa com numerosa família que enchia o cemitério de barulho todos
os domingos — e um elogio às flores que trazia desajeitadamente nas mãos e
estava lançada.
Em minutos soube que a campa era da esposa
de muitos anos que falecera de doença súbita deixando-o só, apesar de ser bem
mais velho que ela. Sem família do seu lado e não se dando com a pouca família
dela, sentia-se totalmente desamparado na casa que tinham partilhado, não
sabendo literalmente como cuidar de si. Sempre bem informada, a Dona Aurélia
aconselhou serviços de apoio, refeições fáceis tipo “é só aquecer”, enfim, uma
infinidade de conselhos para lhe permitirem viver e governar-se um pouco
melhor.
O mero conhecimento rapidamente evoluiu
para amizade e João Lourenço começou a aparecer duas vezes por semana no
cemitério, acompanhando-a nas suas rondas e nos cuidados que dedicava a várias
campas para além da do marido. Ficou impressionadíssimo ao saber que eram de
pessoas que conhecera apenas no cemitério, de visita a outras campas, e que não
tinham família ou amigos que cuidassem deles depois de mortos. Sem ela,
estariam ao abandono, com ervas daninhas a treparem pelas pedras tumulares,
deixadas aos cuidados mais do que desleixados do pessoal do cemitério, sem uma
florzinha, uma vela ou uma oração. Por isso Dona Aurélia acolhera-os como seus,
nos últimos tempos de vida e agora depois de mortos.
Prometeu até a João Lourenço que se
falecesse antes dela, sendo enterrado no lote que comprara junto ao da mulher,
passaria a incluir a sua campa na sua lista de visitas. Passaria até a incluir
ambos, uma vez que graças às histórias que lhe contava era como se tivesse
conhecido a esposa.
Das palavras e conselhos passou em breve
aos miminhos, levando-lhe pelo menos uma vez por semana uma sopinha caseira ou
alguma dose de comida “que sobrara”, gesto que João Lourenço muito apreciava
uma vez que vivia de comida congelada ou já pronta comprada no supermercado.
E assim se foram passando os meses, uns
melhores, outros piores. Mas tudo nesta vida tem um fim e foi o que inevitavelmente
aconteceu.
Apesar de não ter havido obituário nos
jornais — secção que Dona Aurélia nunca perdia nos vários exemplares que a
vizinhança lhe dava depois de lidos — soube do funeral de João Lourenço pelo
pessoal do cemitério que, sabendo como ela gostava de estar presente nessas
cerimónias, a informava sempre de véspera.
Foi a única a assistir, para além do
pessoal da Funerária, e as suas foram as únicas flores sobre a nova campa, que
passou imediatamente a entrar no rol das que estavam a seu cargo. Sentia
saudades dele e das longas conversas que tinham, mas sabia que devia estar
feliz por ver que o seu túmulo e o da esposa andavam bem cuidados e que havia
alguém a acender uma vela e rezar por eles.
Umas semanas depois Dona Aurélia conheceu
Amélia, uma idosa viúva e que acabara de enterrar o único filho que lhe
restava. Ambas sem família viva, tornaram-se inevitavelmente amigas, embora a
amizade nunca extravasasse do cemitério, até porque viviam em zonas diferentes
da cidade.
E foi quando Dona Aurélia foi forçada a
enfrentar um dilema, iria ou não incluir Amélia na lista dos seus mortos? Já
tinha dez, para além do marido, e começava a ser um pouco pesado sustentar
todos com plantas e velas, para além do tempo que lhe tomavam estando
espalhados por todo o cemitério, salvo raras exceções. É claro que quem tem
onze tem doze, um número bem mais “certinho” e ela sempre gostara de coisas
certinhas.
E se ia adicionar mais alguém teria de ser
em breve, os anos começavam a pesar-lhe e seria uma tragédia morrer antes de os
seus mortos serem transladados, deixando-os ao abandono. Seria até uma espécie
de traição.
A questão é que precisava de ter muito
cuidado com a escolha do décimo segundo uma vez que teria de ser o último. É
que o cianeto que o marido usara em algumas das suas experiências estava mesmo
no fim e não fazia ideia de como arranjar mais.
Luísa Lopes, Março de 2020
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