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quarta-feira, 25 de março de 2020

A pedra


No verão, Tiago passava o dia na ribeira. Um fio de água, um charco aqui outro acolá; para os seus quinze anos, era o paraíso na Terra. Caçar pássaros com a fisga não passava de pretexto para andar descalço pelas areias sussurrantes, sob a sombra de amieiros e salgueiros. Raios de sol penetravam nas densas ramagens, mas não conseguiam alterar o frescor da proximidade da água. Silêncio não havia, tampouco ruído. Sons naturais eram a melodia do local: rumorejar das copas verdes, ciciar do fio de água em algum socalco entre pedras, um ou outro chilreio. Ao longe, o som cristalino das campainhas dos rebanhos e os cantos de ranchos de mulheres, em trabalhos campestres.
Naquele dia, esta sinfonia em surdina foi alterada por um “chap-chap”. Tiago afastara-se ribeira abaixo para uma zona aonde ia poucas vezes. A uns cinquenta metros, havia um pego com uma dimensão que permitia nadar. Era de lá que o ruído vinha. Aproximou-se furtivamente, não deixando que a areia pisada o denunciasse. O inesperado afogueou-o. Era Delfina, a filha do rendeiro da quinta contígua, um ano mais nova que Tiago, e que ele já não encontrava havia bastante tempo. Espreitada dali, parecia nua, e muito entretida a nadar.
Caramba! Como estava bonita! E nua? A curiosidade era bem mais potente que o respeito devido. Ia ficar à espreita até vê-la sair da água. A menina, no entanto, alongava o tempo de banho. Com o coração a bater, farto de conter o entusiasmo, Tiago resolveu acelerar o processo. Pôs um seixo na fisga, sentiu-lhe a dureza, apontou para uma rocha do outro lado do pego e disparou. A menina parou de nadar, olhou em toda a volta, em alerta. Tiago meteu a mão ao bolso e lançou segunda pedra. Desta vez, a menina nadou rapidamente para a margem, apanhou as roupas e correu para casa.
Aquele vislumbre fugidio excitou-o até à exaltação. Nunca mais o abandonou. Anos depois, ao recordá-lo, mete a mão ao bolso e ainda encontra lá a dureza da primeira pedra.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 1º lugar, na categoria Conto, no IV Concurso Literário Internacional Palavradeiros, de Boa Vista, Roraima, Brasil, e integra a coletânea resultante — páginas 24 a 25:


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Imagem: Menir do Outeiro, c. 4000–2500 a.C.
Altura: c. 5,6 metros. Diâmetro: c. 1 metro. Peso: c. 8 toneladas.
Reguengos de Monsaraz.

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11 comentários:

Nestes dias que vivemos, temos o dever de tentar manter o ânimo em alta - o nosso e o dos outros - e penso que tu fizeste a tua parte optando por publicar este conto . Como é hábito , leitura interessante , sempre na expectativa do desfecho ... feliz neste caso.

Obrigado! Uma evocação ficcional de dias de liberdade, felizes. Como era a tua ribeira?

Olá, Bispo! É sempre bom ler e reler os teus textos. Bons tempos aqueles que referes e ainda por cima com uma ilustração soberba que faz jus àquela máxima: uma imagem vale mais do que mil palavras.
Abraço forte e protege-te.

Obrigado pela leitura e pelo comentário, Desconhecido, sejas lá quem fores!
Saúde!

Obrigado pela partilha. Saúde.

Realidades campestres, que bela tradução!

Neste caso, efabulações libidinosas...

Orgulhoso por ver seu conto conquistar outros públicos

Olá, Aldenor! Obrigado!
Posso revelar-lhe que também aqui está a ter boa aceitação.
Abraço!

Continuas com imaginação muito fértil. Gostei PARABÉNS.

Obrigado! Quando a inspiração é apetecível, torna-se fácil...

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