Via Dolorosa
I. Jesus é condenado à morte
O dia da sua morte começou na barriga da mãe. Quando foi espirrada lá de dentro, já tinha o destino do lixo, um amontoado de imundícies no leito do rio, onde catadores bêbados, cachorros magros e ratos enfurecidos disputavam restos de comida. Apodreceu em meio às cascas por algumas horas, mas quis a sorte, ou o azar, que espremesse um choro azedo exatamente na hora em que Madalena, uma das putas da rodovia, fazia o seu ofício. Curiosa, escavou a montanha de entulhos e tropeçou os olhos no bebê, que se mexia muito pouco.
II. Jesus carrega a sua cruz
Kelly Cristina vingou nas mãos daquela mãe improvisada. E tomou mais corpo do que podiam suportar os olhos embriagados dos catadores e dos drogados que disputavam as margens do rio. Aos 14 anos, já fazia a vida. Aos 16, tinha um dos melhores pontos no calçadão que margeava a rodovia paralela ao rio. Era a preferida dos motoristas e caminhoneiros, que a recolhiam embaixo do viaduto. Aos 17, mais tarde que a maioria, criou barriga. Como queria ver a cara da criança, escondeu de Madalena a prenhez, até que nenhuma das mulheres teve coragem de lhe fazer um aborto.
Viu a filha nascer bem cedo, numa manhã de sexta-feira, dia de movimento intenso no calçadão. Saiu do barraco, mais tarde naquela noite, banhada e perfumada, apesar do cansaço e das dores. Não sabia que, ao voltar, a criança já teria ido embora. Madalena tinha destino combinado para o bebê e achou melhor lhe dar sumiço sem avisar a ninguém.
Kelly Cristina, histérica, esbofeteou-a para que dissesse onde estava a filha, mas nunca mais soube da criança.
III. Jesus cai pela primeira vez
É tarde da noite. Da vida, também. Kelly conhece o veneno que sacia o seu sangue. Vai morrer do prazer que sente pelo sexo de todo dia. Não lhe interessa a saúde que os exames feitos pela ação social das igrejas da vizinhança comprovam, uma vez por ano. Seu corpo morre é de vontade, não de descuido; aquele corpo de curvas sensuais que é disputado sob o viaduto. Há nove anos, provou seu primeiro homem. Tinha gosto de pressa. Nunca mais experimentou coisa melhor que os homens da estrada. Faz com pressa o ofício até hoje. E goza.
Ela olha o cadáver do traficante com quem se amasiou depois de parir a filha sendo levado porta afora. Sem sobressaltos. Ela olha, indiferente, o homem morto, lembrando-se apenas das surras diárias que ele lhe dava. E das pedras de crack que ele trazia. O puto só entregava o bagulho em troca de um boquete demorado. Pau mole de merda, pensava, enquanto tentava acelerar o gozo dele. O único contratempo dessa morte é que agora ela vai ter que arranjar as pedras em outro lugar.
Mais cedo, durante a briga, foi atingida duas vezes pela ponta da faca do companheiro: no bucho e no rosto, no mesmo lugar onde, na véspera, o anel de ouro pesado que ele usava a tinha deixado com um olho roxo. Nada dói. E mesmo que doesse. Ela não tem tempo para cuidar de feridas. Briga de gente é coisa de porrada. Mas a briga deles tinha sido de bicho. No impacto do primeiro soco, cuspiu a gilete que guardava embaixo da língua. Ainda teve tempo pra pensar se queria mesmo ficar sem o macho e sem o crack. A cada indecisão foi atingida pela ponta da faca. Agora, só pensa é na beleza do talho que desenhou com a lâmina na garganta dele. Sorri, imaginando que o vagabundo só deve ter se dado conta de que tinha morrido lá do outro lado, no meio do inferno.
Ali, naquele fim de mundo sórdido, a polícia não tem interesse em saber dos fatos. As meninas mentem por ela. Dizem que quem matou o companheiro de Kelly foi um homem que nunca viram. Entrou na casa, matou, fugiu. Ninguém questiona. Nem a polícia nem os vizinhos. Um traficante a menos distribuindo sonhos de merda. Mais um ponto de vendas liberado pra outro vagabundo fazer dinheiro com o vício alheio.
Quando se levanta da cama na manhã seguinte, Kelly Cristina faz três clientes de uma vez só, no mesmo quarto. Sua pressa está atrasada. Deu para se lembrar da filha; imagina cada dia um rosto diferente para a menina. Pensa nela enquanto faz sexo com pressa na rodovia. Bebe cachaça e fuma uma pedra de crack quando acorda; bebe e fuma entre um cliente e outro; bebe e fuma na cama dura da casa de Madalena, para poder dormir. Não dorme. Imagina o rosto da filha. Chora durante o sexo e crava as unhas nos homens. Depois, se esquece de gozar ou de fingir. Já não é a preferida dos caminhoneiros nem disputa o calçadão. É mulher de beira de rio, de beco lateral.
IV. Jesus encontra a Sua Santa Mãe
Ontem à noite, desligou os sentidos. Seus olhos amanheceram perdidos nos entulhos do leito do rio. Madalena a encontrou pela manhã, imunda e abraçada às próprias pernas. E se lembrou dela bebê, naquele mesmo lugar, sem forças, coberta pela sujeira do lixo. Os anos a cobriram com a sujeira da vida.
Na casa das meninas, para onde Madalena a levou, Kelly não chora mais. Faz o que mandam, faz o que pode. Sem sexo, sem filha. De vez em quando, uma das meninas lhe dá uma pedra de crack, mas nada é suficiente. Ela precisa de mais. No quarto, treme, sua, grita, se urina. Passa as noites acordada, nos braços de Madalena, que tenta acalmá-la e impedi-la de sair.
V. Jesus recebe socorro para carregar a cruz
Agora já faz um ano que Kelly trabalha para Ceiça e José Arlindo. Ceiça, uma mulher imensa, simpática e desbocada, que trabalha em casa nos cabelos e nas unhas da vizinhança. É irmã de Madalena. Zé Arlindo, um homenzinho mirrado que encanta a freguesia numa lojinha de frutas no centro da cidade. São amasiados, companheiros plenos. Pertencem a um mundo que criaram só para si. Gostam de Kelly. Fazem dela a filha que os anos não trouxeram. Pagam pela internação, pelos remédios, pelo médico de todo mês. E não falam do dinheiro gasto, só de coisas boas.
Aos poucos, Kelly controla a depressão. Distrai-se com as clientes de Ceiça, que a tiram da apatia com suas fofocas e gargalhadas. Zé Arlindo, que se ausenta de vez em quando para uns negócios secretos, sempre pede a ela que o substitua na banca de frutas. Kelly Cristina já é mais procurada pelos fregueses do que ele.
Há muito, tornaram-se amigos. Um sentimento novo que Kelly não sabe se deseja. Ela ainda pensa na filha que não conheceu além do parto; nas cicatrizes que traz no rosto e no ventre; nas pedras de crack que deseja com todas as forças e tremores, todo dia. O mero pensamento na droga já a faz suar e sentir dores fortes na barriga, apesar dos remédios que toma.
VI. Verônica enxuga a face de Jesus
Esta noite, só esta noite, Kelly quer outro remédio para a agonia que inferniza os seus dias alienados. Quando entra na casa das meninas, suas narinas se fecham, como se assim pudesse impedir o cheiro das lembranças. Ela precisa de Madalena, a única mãe que conhece. Em seus braços, sente-se forte para ir em frente. Forte para se destruir novamente.
VII. Jesus cai pela segunda vez
Nem faz um mês que Kelly voltou. Nem faz um mês que cobre de novo o mesmo ponto na rodovia, que bebe, que fuma as pedras de crack que troca por dinheiro ou por sexo. É capaz de repetir esse caminho rasteiro quantas vezes precisar. Não se despediu de Ceiça nem de José Arlindo. Teve medo de que eles lhe pedissem pra ficar. Gosta de imaginar que tenham esperado por ela durante alguns dias — precisa acreditar nisso —, mas compreende que os decepcionou como faz com todo o mundo. Por hábito, por natureza.
Não importa. Ela não pensa mais na sujeira que lhe serviu de berço, nem na imundície pegajosa que pegou de cada cliente, nem naquele lixo humano a quem deu fim pelo fio da gilete. Não se assusta mais com a noite que nunca termina. O que ela sente dói além da carne e dos ossos. Uma agonia que não cessa, um descontrole na alma. É dor de cansaço.
VIII. Jesus fala às mulheres de Jerusalém
Ela cai no chão, entorpecida pelo crack e pela cachaça barata. Quer dormir, mas não vai. O que ela vai é se levantar; ela sempre se levanta. Precisa apenas esperar que o corpo elimine os excessos para ser capaz de se reerguer. Mas hoje seu corpo não quer obedecer. Ouve vozes ao seu redor e sente que alguém despeja na sua boca, lentamente, uma sopa cheirosa. Quando um agasalho de lã envolve seus braços enrijecidos, a dor se distrai por uns momentos. Ela agora tem muitas mães. Aperta a mão de quem a aqueceu e, fortalecida pelo caldo, consegue sentar-se, exalando um cheiro de vômito. As mulheres recuam.
IX. Jesus cai pela terceira vez
Não, nada mudou. Aquelas senhoras educadas, que exercitam apenas por dever o honroso ofício da caridade cristã, a acusam sem dizer palavra. Ela é apenas uma prostituta drogada.
Levanta-se, cambaleando, e foge do risco de se sentir humana. Ela precisa prosseguir com a noite, encontrar qualquer caralho e trepar muito, gozar, beber, fumar muitas pedras para que a luz da manhã aconteça sem dor. Ou não aconteça.
X. Jesus é despojado de suas vestes
Cinco da manhã. A madrugada foi um tempo sem clientes. Kelly prefere pensar que está se preocupando à toa e que a escassez não é só para ela. Está sem homens, sem droga. Ninguém lhe dá mais nada se não for em troca de dinheiro. E enquanto cambaleia pensando no que ainda pode roubar na casa de Madalena, para trocar por uma pedra, não percebe os rapazes que se aproximam. Nem suas vozes histéricas nem os risos alterados.
A curra não a viola pelo sexo multiplicado naquelas seis ou sete posses descontroladas. O que a enche de fúria é a impotência. É o consentimento que não deu.
XI. Jesus é pregado na Cruz
Debate-se como um bicho até que sente a lâmina gelada entrando no seu ventre, no mesmo lugar em que entrou a outra, mais antiga. A carne fina explode com facilidade e o sangue esguicha nos rapazes, fazendo com que recuem por um instante. Mas logo voltam e a chutam até os entulhos na beira do rio, onde ela se mistura aos restos de comida. Às gargalhadas, perseguem algumas ratazanas e as apanham pelo rabo, jogando-as sobre Kelly Cristina. Depois, entediados, vão-se embora.
XII. Jesus morre na cruz
Kelly Cristina não sente mais nada. Inspira o fedor da comida podre e aninha-se sob as cascas. Conhece aquele berço fétido. Agoniza em meio ao lixo. Aliviada. Finalmente, é hora de seguir o caminho que vem adiando desde o parto. Madalena não está por perto. Não pode condená-la, mais uma vez, a viver.
XIII. Jesus é descido da Cruz
Ceiça acorda Zé Arlindo antes que o despertador soe a campainha. Ela não sonha nunca, mas essa noite sonhou com Kelly lhe pedindo um abraço.
Ceiça se apressa, sem esperar pelo marido. Vai até a casa das meninas. Madalena está em pé na porta, pronta, esperando como se tivessem combinado esse encontro ruim. Tiveram o mesmo sonho.
Juntas, percorrem a pé a trilha das meninas ao longo do leito do rio. As marcas da noite estão nas paredes com cheiro de sexo e nos preservativos usados que servem de rastros. Kelly Cristina espera por elas com os olhos sem viço e a boca entreaberta por onde entrou o último ar da noite. O seu corpo aguarda por um abraço.
XIV. Jesus é sepultado
A tarde não tem pressa de acabar. No cemitério, Madalena e Ceiça, de rosto seco, consolam as putas da rodovia. Quando estiverem exaustas, consolarão uma à outra. E só então vão chorar.
José Arlindo olha de longe a comunhão das mulheres e pensa em suas frutas para se distrair da falta de ar, da falta de tudo.
É de tempestade o céu que testemunha o caixão sendo engolido pela terra. Mas no outro céu deve ter sol. Lá, deve ter.
1 comentários:
Doeu. Vai doer para sempre.
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