Início da década de 1960...
A pequena vila, acanhada, era quase estéril de
empregos. Afora os pequenos sitiantes e comerciantes, o resto lutava só Deus
sabe como... Mas tudo era mais fácil, visivelmente mais fácil que hoje. É bem
verdade que a comida não era tão diversificada como agora, mas existia a
fartura. Em quase todas as casas podia-se ver uma horta ampla, um chiqueiro
apinhado de crias, galinhas aos montes, sem contar as frutas! A gente comia até
se fartar, e não havia a menor preocupação com a sobrevivência futura, como
hoje. Não sei se isso, se essa despreocupação estava só com as crianças, e
ficava para os adultos a angústia do “como fazer?”. Acho que não... As pessoas
eram leves, não mostravam tensão. Eram falantes, alegres, maravilhosamente
solidárias. Tempo bom! Sadio nos costumes e nas amizades!
Em casa, minha mãe, viúva, com uma penca de
filhos... Éramos assustadoramente pobres, quase sem perspectivas, mas comida
não faltava. Do quintal vinha muito do nosso sustento. Comum era a troca de
verduras e legumes com os vizinhos. Não me sai da lembrança o caramanchão de
chuchu de Dona Eulália. Imponente, fecundo! Erguido próximo ao batedouro de
roupas, alimentado com água em abundância, produzia o ano todo!
Todos nós trabalhávamos. Minha mãe fazia salgados
para os bares, meu irmão era metido a eletricista, o outro era balconista da
Casa Pereira, a única loja de tecidos da vila, e assim por diante... Eu, caçula
de sete anos, defendia o meu com uma caixa de engraxar. Tempo bom pros
engraxates! Todo mundo usava sapatos de couro. Ainda não havia surgido a febre
do tênis. Bom mesmo era engraxar botinas! O cano alto permitia cobrar mais caro
pelo serviço. Justificável, não?
Na praça da igreja, pela manhã, eu tinha o melhor
ponto. Cedo, com o sol ainda fraquinho, os velhos se juntavam nos bancos para
uma prosa gostosa, e ali eu fazia a minha clientela. Quando o sol esquentava, e
até que chegasse a hora de ir para a escola, ficava difícil. Era raro encontrar
um ou outro freguês pelas ruas. De vez em quando conseguia algum na barbearia.
Mas, decididamente, não era vantajoso esperar.
Achei uma saída espetacular! Ia engraxar em
domicílio! Passava pelas casas e assim engraxava os sapatos da família inteira.
Com o tempo consegui organizar uma clientela fixa, e com isso tinha trabalho de
segunda a sábado. Já sabia que na segunda-feira engraxaria na casa do Seu
Dorival, na terça na casa do Seu Duílio, na quarta na casa do Seu Osório... Adorava
as sextas-feiras! Verdade mesmo! Nesses dias eu nem passava pela praça. Ia cedo
para a casa do Seu João. Sujeito incrível! Meu ídolo! Gostava tanto de
conversar com ele que fazia meu serviço lentamente, com esmero excessivo. Nunca
lhe sujei as meias! Alongava minha tarefa ao máximo para poder ficar mais tempo
ao lado dele. Como era sábio!
Sempre que eu chegava, um farto café da manhã me
esperava. Até queijo eu comia! Parecia mais um banquete! Nutria um carinho
especial por mim... Acho que era mais um caso de simpatia recíproca, de
empatia, de encaixe completo. Aquela velha história de panela e tampa... Era
mais que isso! Era uma afinidade tamanha, tão intensa e profunda, que fazia o
tempo voar, que alimentava a minha alma! Homem de seus cinquenta e tantos anos,
muito calmo, costumeiramente vestido em terno de casimira ou de linho bem
amarrotado, os cabelos sempre lustrosos, recendendo à brilhantina. Mãos
grandes, com as unhas sempre bem aparadas, e trazia no dedo anular um largo
anel de ouro com uma imensa pedra de rubi. Uma figura marcante, sem dúvida
alguma!
Seu João era meu chapa! Sempre que falava comigo,
com aqueles olhos de raios-X, não hesitava em demonstrar seu afeto e me fazer
um agrado. Às vezes, fico pensando se eu não encontrava nele aquele pai que eu
havia perdido?! Sei lá... Só sei que ele era muito importante pra mim! Guardava
as suas palavras como um registro, e as ficava matutando à noite, antes de
dormir. Entre tantas coisas que me passou, guardo claramente e com saudade as
suas aspirações. Apesar de toda sua sabedoria, não se aprofundara nos estudos.
Deixava claro em suas conversas o desalento desta proeza irrealizada. Queria
ter sido engenheiro! Mas, entremeado pelas peripécias que a vida reserva a
todos, não passou do quarto ano primário. Foi pra luta, trabalhou muito, e
tornou-se cartorário. Aliás, profissão que levou até o fim da vida!
Mas o que mais me empolgava mesmo, era a sua
campanha política. Conversava horas e horas, comigo, sobre isso. Estava se
preparando para ser Presidente da
República! Hoje sei que só falava disso comigo, é claro! Falava sobre suas
estratégias políticas, seu plano de governo, da escolha e da preparação de seus
cabos eleitorais... Juro! Desejava ser um deles! Eu me sentia tão envolvido com
suas ideias, que queria que os dias voassem para que eu me tornasse mais velho
e pudesse chegar a ser um cabo eleitoral dele. Verdade! Era até capaz de fechar
os olhos e me imaginar com as mãos cheias de “santinhos” com o retrato dele, e
com bandeiras trazendo o “slogan” de sua campanha. Sabe como ele me “comprou”
nesta campanha toda? Com seu plano de mudar o calendário. Afirmava, e isso
acontecia sempre que nos encontrávamos, que quando fosse Presidente da
República mudaria completamente o calendário. Não haveria dias comuns da
semana. Nada de feira, feira, feira...
Só existiriam o sábado e o domingo. E mais ainda, o calendário escolar seria
invertido. No período das férias teríamos aulas, e o período das aulas seria
transformado em férias! E não era pra eu me empolgar? Estudar só três meses por
ano? Inacreditável! Seria a glória! Daí o meu interesse pela campanha e pelo
meu ídolo. Ele era o máximo! Quantas ideias maravilhosas! Como eu o admirava!
Hoje, com os meus cabelos brancos, rememoro tudo
isso e chego a ter ataques de riso quando penso em algum detalhe particular
daquelas nossas conversas. Propostas utópicas! Devaneios... Sandice pura! O
pior de tudo é que eu procurava passar essas ideias adiante! Dentro de minha
ingenuidade e afoiteza, propagar esta campanha era primordial! Em casa falava
com minha mãe, com meus irmãos, com os vizinhos. Na escola, falava com os
meninos. Mas ninguém me ouvia. Ninguém se empolgava... Cheguei até mesmo a
pensar que o ideal seria levar todas essas pessoas até a casa do Seu João,
assim ele mesmo exporia suas ideias e seu programa de governo. Quem sabe assim,
as pessoas se motivariam! Que nada... Ninguém queria me ouvir... Quando dava
por mim, falando pelos cotovelos, entusiasmado com a campanha, estava sozinho.
As pessoas davam-me as costas, e eu ficava pregando no deserto. Achava-as
tolas, desinteressadas, burras mesmo! Afinal, não davam ouvidos a ideias de
vital importância, a planos que mudariam totalmente suas vidas! Seria uma
guinada de cento e oitenta graus! Bobagem... Inútil tentar convencê-las... Eu
me sentia mais triste ainda porque percebia a minha incompetência como cabo
eleitoral. Nunca poderia ser um deles! Não conseguia convencer ninguém!
E foram muitos meses assim, anos até! De repente, a
voz do “Meu Presidente” se calou. Não falava mais... Nem comigo, nem com
ninguém. Ficou triste, abatido. Nem engraxava mais os sapatos! Também, não os
usava! Só calçava chinelos e quase não andava. Só que uma alegria eu ainda
sentia. Não ouvia a sua voz, mas seus olhos me falavam. Seu jeito de me olhar
ainda era o mesmo. Transparecia amor, carinho, cumplicidade. Eu ficava tempo ao
lado dele, sentado em uma cadeira no canto do quarto. “Meu Presidente” estava
muito mal. Eu não sabia bem o que lhe acometia o corpo, mas percebia que estava
chegando ao fim. Ao fim da campanha, ao fim da proeza, ao fim da vida.
E o agosto terrível chegou...
Levou, com seus ventos mórbidos e angustiantes, a
vida do “Meu Presidente”. Velho amigo!
Meu timoneiro!
Sempre que passo por aquela rua, olhando aquela
varanda, vislumbro a sua imagem no mesmo traje de linho, com aquele sorriso
zombeteiro, com aquele olhar afetuoso, e com a mesma imponência do “Meu Presidente”.
Regina
Ruth Rincon Caires
1 comentários:
O Brasil precisava de um presidente assim. Certamente seria melhor que esse que aí está!
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