As cinzas, apesar de
sutis, me cobriam – me confundiam. Declaravam que seria ou viria a ser pó, como
nas escrituras. Assim fui levado a crer. E sobre essas coisas de sagrado, etc.
e tal, já não me meto mais. Não quero mais tomar partido. Durante um tempo fui
ferrenho defensor dessas ideias; da sapiência e correção irreprochável dos
homens de lá. São só homens, ouvia. Mas são homens com responsabilidades. São
homens, talvez, com maior responsabilidade. Têm de dar exemplo.
No alvorecer da vida,
muitas e muitas vezes, era contido ao ambiente sacro, por decisão de meus pais.
Não os culpo; tentaram, errando, fazer o melhor. Acertaram errando, quiçá, com
um juízo de temor e obsessão às determinações de alguns sacerdotes que
frequentavam a minha casa – segundo suas interpretações. Eu, menino, já me
sentia assaz culpado, um criminoso pelos atos banais de uma vida mundana:
aprisionar calangos e animais não domésticos; matar insetos indesejáveis;
destruir, com muita energia, formigueiros e afins, para alojar os bonecos dos
Comandos em Ação; comprar chicletes com tatuagens autocolantes e fixá-las nos
braços e pernas.
Certa feita, padre
Jerônimo, num dos almoços regados a vinho e a enormes quantidades de asinhas de
frango, uma de suas extravagâncias prediletas – que me fazia questionar o
pecado da gula –, para agradá-lo, sobretudo, me encontrou distraído, meio
acabrunhado. Em trejeito propenso a me assustar, numa lógica pouco convencional
de aplicar “brincadeiras” grotescas, deu-me uma bênção da qual não precisava:
“Senhor, que esse menino tome juízo e pare com esses vexames de querer se
alijar de seu caminho. Declaro, portanto, segundo as ordens de nosso Senhor,
que deverá ser um bom padre, para a expiação de seus pecados!”. E ria, como se
não houvesse amanhã. Ria, descontrolado, ansioso por minha resposta; que não
veio. Veio, sim, o choro e a procura implacável por meu esconderijo, nos
confins do guarda-roupa de meus pais. De lá, por sorte, depois de tanto chorar
e dormir (chorando), minha mãe me achou e me socorreu, com um beijo e um abraço
apertado; e uma sopinha quente a me esperar. Já não estava lá o pesado homem
que, como penitência, decretara que deveria ser padre.
Passei a ter pesadelos,
celebrando missas em lugares inóspitos, para as almas e os ventos, que
percorriam gelados as minhas espinhas. Não sei bem como sucedeu, mas, tal qual
o tempo penoso que demorava a passar, mãe me punia com sua ânsia de querer desvendar
a minha arrelia da vida. Naquela época, no final dos anos oitenta, ter um
psicólogo era luxo. Fui obrigado a participar de tantas sessões quantas fossem
necessárias para mostrar o profundo segredo de meu coração; e, assim, me pôr em
ordem.
Foram dias torturantes, porque
o senhor psicólogo, mesmo gentil, relativamente ao qual não tenho nada a favor
nem contra, passava infinitas horas a me questionar. Eu não queria falar. Eu
não queria sair de casa. Eu mal queria sair de meu esconderijo. Eu não queria
ser padre. E não sabia ao certo o que queria ser. “Meu filho, olha lá o seu
futuro! O presente é atroz; o futuro vem como furacão, mais forte ainda. É bom
ir pensando no que vai ser quando crescer”. Esse era meu pai, homem muito pronto,
milimetricamente organizado, focado, e me exigia a mesma carga: pronto.
Os meus pesos eram
inúmeros, para uma criança de dez anos. Eu, sinceramente, me sentia atulhado,
cansado. O psicólogo, por sua vez, se dedicava a me perguntar sobre questões
escolares, amiguinhos, vontades, brincadeiras; nada sobre minha vida familiar
exemplar. Não apresentando melhora, então, minha mãe resolveu me tirar depois
de um ano. Atribuo ser uma decisão errada. Talvez precisasse de mais uns anos.
Aos poucos ia soltando, mesmo que com sacrifício, as correntes que me prendiam.
Não podia ser tudo de uma vez.
Com treze anos, enfim,
sabia definido que não teria nada que ver com as determinações religiosas. Essa
consciência eu tinha, agora, por mim. Desvencilhei-me de uma responsabilidade
imposta.
Com quinze – para a minha
iniciação à vida adulta, refletia –, precisava dar uma guinada drástica: montei
uma banda de rock. Meus pais se desesperaram. “O que que você vai ser,
Ricardinho, um pronto na vida?”. A prontidão que esperavam, definitivamente,
não era essa. No entanto, feliz por mim, por minha coragem de ser livre, entreguei-me.
Não sabia tocar bateria – não tão bem quanto desejava –, mas sonhava em me
aventurar pelo país e passar os restos de meus dias viajando e tocando em cada
estado, ou mesmo no exterior, se a bênção fosse grande.
Passados alguns
perrengues, digo que há uma fé aqui; uma fé própria, independente e humana. Não
sei como conseguiria ultrapassar os obstáculos se não a tivesse. Quem sabe, de
certa forma, ser “padre” é assumir o múnus de cuidado e, nesse sentido, sim,
sou cuidador de vidas.
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