Depois de tudo o que se tinha passado, continuava
a conservar aquela chave. Ao utilizá-la, acederia a um mundo que
deveria estar esquecido e ao qual ele não pertencia. Por uns
segundos, considerou dar a volta e ir embora desaparecendo para
sempre daquela situação.
Deitando o pensamento para trás rodou a chave na
fechadura e abriu a porta que cedeu sem dificuldade.
O hall do apartamento encontrava-se na penumbra e
com a mão direita tateou, conhecedor, o botão que acendeu as luzes.
Percorreu com o olhar a sala, o sofá que lhe
trazia tantas recordações… e apenas tinham passado três meses
desde que estivera ali a última vez.
A pequena mesa, entre os sofás, tinha dois copos,
um dos quais tombado. Havia amendoins e pistáchios espalhados no
tampo e no chão.
Mantinha-se, por cima do sofá maior, o desenho a
lápis da torre Eifell, que ele fizera numa outra vida. Durante a lua
de mel na cidade luz. Tudo estava como antes; a mesma mobília, os
mesmos tapetes, as mesmas pinturas…
Dir-se-ia que o tempo parara naquela casa no mesmo
dia em que se fora.
- Isabel! – Chamou suavemente, quase com
receio. – Onde estás?
Avançou pelo corredor que levava aos quartos, não
acendeu a luz porque a iluminação que saía da porta para onde se
dirigia era suficiente.
- Isabel! – Insistiu, enquanto caminhava
devagar.
Na entrada do quarto, chutou uma garrafa
abandonada no chão, que rebolou para debaixo da cama. Parou junto ao
candeeiro de mesa de cabeceira que também ali jazia tombado.
Sobre a cama, numa amálgama de lençóis,
cobertores, almofadas e longos cabelos escuros desalinhados, estava
um corpo imóvel enrolado sobre si próprio.
Pé ante pé, aproximou-se e pousou suavemente uma
mão sobre o braço da jovem, sussurrando:
- Isabel! Estou aqui.
Dois olhos iluminaram-se com um estremeção, por
trás dos cabelos negros, enquanto a voz chorosa se lamentava:
- Luís, ele foi-se. Ele foi-se novamente, mas
desta foi de vez…
Pacientemente, ele sentou-se na cama, aconselhando
:
- Tem calma, já sabes que ele volta sempre…
- Desta vez não. – As lágrimas corriam
livremente no rosto belo que ele descobrira com movimentos suaves
por trás da cortina de cabelos. – Voltei a fazer-lhe uma cena,
ele tinha-me avisado que não me aturava mais cenas de ciúmes.
Luís olhou-a com pena, enquanto lhe acariciava o
rosto e perguntava:
- Que vamos fazer de ti, meu amor?
- Eu não consigo! – O choro tornava-se mais
forte. – Elas comem-no com os olhos, não posso ir com ele a lado
nenhum que elas querem tirar-mo e ele é meu, só meu!
Escondeu o rosto na perna dele, enquanto chorava
descontroladamente.
- Como foi desta vez? – A voz profunda dele
não mostrava particular interesse enquanto lhe afagava o cabelo.
Por entre soluços ela explicou:
- Foi no restaurante… No Mario’s; uma
empregada nova… loira, pequenina, passou a noite inteira a
fazer-se ao Carlos.
- Tu costumas ver coisas onde elas não estão.
– Censurou-a com meiguice. – Sei-o bem. Não estaria a pequena a
ser simpática apenas? É uma empregada, tem que agradar aos
clientes.
Isabel parou de soluçar, rodou a cabeça e
olhou-o nos olhos:
- Achas que não sei ver quando me querem o
homem? Baixava-se de forma a mostrar o decote todo! Dava para ver o
umbigo!
Ele não conseguiu conter um sorriso.
Isabel recomeçou a chorar:
- Vês? Nem tu me levas a sério. A gaja estava
a atirar-se a ele. Quando estávamos a meio da refeição ela veio
perguntar se estava tudo bem e eu não aguentei mais. Gritei-lhe que
viéssemos embora.
- Mas vieste com ele… Ele trouxe-te cá?
- Aqui é que foi o pior. Eu tentei acalmar as
coisas e fazer-lhe uma bebida mas aí quem explodiu foi ele. Atirou
com as coisas, gritou que não me queria ver mais e foi embora.
Agora nem me atende o telemóvel...
- Vais ver que não é nada! Está zangado, mas
vai passar.
Chorava, agora mansamente e deixava a cabeça
caída na perna dele gozando dos afagos carinhosos e cheios de amor
que recebia.
- Só tu me entendes, amor… - Lamentava-se
entre as lágrimas. – E tratei-te sempre tão mal…
- Não vai ser com certeza agora que te vais
querer redimir. – O tom de voz alterou-se ficando mais cínico. –
Por isso não vamos falar do assunto.
- Perdoas-me? – A voz dela principiava a
arrastar. – Eu não queria fazer-te… mal.
- Não tenho nada a perdoar-te. Achaste que era
altura de mudar de vida e mudaste…Tomaste alguma coisa? –
Perguntou preocupado.
- Sim… Tomei um calmante… Tenho… muito
sono…
- Então deixa-te estar, dorme, descansa.
- Fica…
Olhou o relógio. Duas horas e trinta e cinco da
manhã… Como de costume, ela ligava-lhe e ele corria para os braços
dela a consolá-la… Das dores de outro.
O respirar dela tornara-se ritmado, entrecortado a
espaços por pequenos suspiros. Ele não se cansava de lhe acariciar
o cabelo. Parecia incrível como amava aquela mulher que o desprezara
e abandonara. E ele tornava a correr, como um cachorrinho, sempre
que ela estalava os dedos; deixava a casa, a cama e a sua atual
mulher, que cada vez achava menos graça à situação.
Uma lágrima rebelde escorreu até ao queixo e
pingou nos lençóis.
Ajudou-a a poisar a cabeça no travesseiro e
levantou-se.
Apanhou-lhe o telemóvel do chão, procurou a
última chamada recebida e leu: “Chamada perdida, Carlos 5 de maio
2010 1:45”
Sorriu. Ela dissera-lhe que ELE é que não
atendia o telemóvel…
Pegou no seu próprio telemóvel e marcou o
número:
- Carlos? Sim, sou eu. (…) Claro, já sabia
que me chamaria. (…) Está a dormir agora. Parece que tomou um
calmante. (…) Sim, vem para cá, eu vou embora. (…) Vá lá, já
sabes como ela é, fica furibunda, mas é doida por ti e não
consegue conter os ciúmes. Vem para cá e deita-te ao pé dela,
vais ver que amanhã fazem as pazes. Um abraço. (…) Não te
preocupes, sabes que me preocupo com ela e que vocês podem contar
comigo. Adeus.
Desligou o aparelho e aproximou-se novamente da
cama. Cobriu-a com o lençol, depositou-lhe um beijo na testa e
sussurrou-lhe docemente:
- Adeus meu amor, ainda não é desta que volto
para ti… Um dia hás de pedir que o faça… Prometo aqui que só
me tornarás a ver nesse dia… E, mesmo que não te torne a ver,
amo-te demasiado para te desejar mal. Adeus.
Deitou um último olhar ao corpo adormecido e
caminhou lentamente até à porta fixando demoradamente cada objeto
do corredor e a posição de cada móvel. Tinha a sensação que não
mais voltaria ali.
Sopesou a chave no bolso, enquanto perguntava a si
próprio se a deveria deixar na mesa da sala.
Cada passo dado demorava mais que o anterior até
chegar à porta da rua. Uma vez aí, pensou que um dia, Isabel iria
precisar de ajuda novamente; iria telefonar e ele viria correndo uma
vez mais, na esperança que fosse para ficar.
Manuel Amaro Mendonça
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