Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 26 de março de 2020

Páscoa

“Até o final da quarentena, todos os professores da nossa escola deverão atender os alunos por meio de videoaulas. O treinamento na nova plataforma de ensino começa hoje à tarde. Na próxima quarta-feira vocês já deverão estar capacitados para reassumir suas turmas. A escola voltará a funcionar, só que virtualmente, neste primeiro de abril. Serão pelo menos dois meses de exposição de conteúdo à distância. As horas on-line serão contabilizadas no calendário letivo como aulas dadas”.
Após ler aquele meigo recadinho despachado pela coordenadora pedagógica, Raquel tomou um suco de maracujá com sal de fruta, mas que de nada ajudou na digestão da novidade. Depois de um tempo silente e pensativa, dobrada em seu afligimento particular, nossa querida professora entrou em pânico, desferindo lamúrias em série pela casa: “Se eu não sei tirar nem selfie, se não baixo aplicativo no celular, se nunca fiz curso à distância, se sempre lecionei olhando nos olhos das minhas crianças, se gosto do burburinho das turmas, se nada disso está no contrato de trabalho, se é tudo tão difícil e diferente, se não quero virar youtuber, proftuber... Não consigo. Não quero. Vou pedir demissão”.
Vendo a agonia da esposa, Natan veio em seu socorro: “Calma, meu bem. Você aprende”.
“Aprender a ser tecnológica assim, de supetão? Esse povo está doido”.
“Raquelzinha, lamento informar, mas nós não temos escolha. Você vai ter de se adaptar, pelo bem da nossa família”.
“Está tudo implodindo, Natan. Você não vê que é a minha ruína?”
Raquel sentiu raiva da profissão que escolheu, das inovações impostas goela abaixo, das transformações digitais, de estar sendo obrigada a sobreviver no século XXI, de ter de aturar modernidades e ouvir discursos clichês de resiliência, de haver contratado outrora conselhos de coachings e de psicólogos e de haver inclusive comprado e lido livros de autoajuda. Sentiu corar a cútis, sentiu tremer o tônus, sentiu ferver o ódio pelo vírus e por todo o ônus que a oprimia. E pranteou, em grossas lágrimas e estranhos urros, sua débil condição.
Lalá, a filha de sete anos, acordou meio assustada com aquele barulho incomum. “Mãe, cadê meu leitinho com Nescau?”
“Hoje não tem leitinho, não tem almoço, nem lanche, nem brincadeira, hoje não tem diversão. Você está me vendo, mas não estou aqui. Não conte comigo para mais nada nem hoje nem nos próximos dias.”
“Que isso, mãe? Você está com aquela doença?”
“Não, Lalá. Sua mãe está preocupada porque vai ter que aprender a ensinar pela internet.”
“Aula pelo computador? Legal, mãe. Queria que minha professora ensinasse desse jeito.”
“Ela deve estar se preparando também, Lalá, mas pra ela vai ser fácil. Ela é mais antenada que eu para essas coisas de informática.”
“Natan, já pensou o gato pulando no meu notebook na hora da aula? Os vídeos rodando e rodando e rodando sem carregar cem por cento, já que nossa internet é fracotinha? Meus alunos, a coordenadora, a diretora vendo você desfilar pela casa sem camisa, de bermudão ou de cueca puída? Ai, que vergonha. O pai da Júlia, aquela aluna superdotada, insistindo para assistir às explicações junto da menina? Já pensou a meninada toda ensaiando Melim ou Anitta e eu não conseguindo parar a cantoria?”
“Calma, mulher. As ferramentas de ensino não devem ser assim tão complicadas. Você não admira tanto a Jana, que faz teletrabalho há tanto tempo? É a sua vez de ficar moderna, de trabalhar sem sair de casa.”
“A Jana não é professora. Ela é jornalista.”
“Mãe, eu sei tudo. Te ajudo com a internet.”

Quando, enfim, chegou o momento de assumir a sala de aula virtual ainda como que movida pela iminência do fracasso, pensando seriamente em fugir , viu e ouviu pintar na tela, como mágica, um a um, cada rosto, cada voz da turminha. Criança é treco tão cheio de vida! Criança é claro que é milagre!
A educadora respirou fundo. Estava, enfim, diante, bem dentro do universo cibernético que tanto a havia testado e consumido.
“Oi, tia Raquel.”
“Estou te vendo, tia. Você está me vendo?”
“Tia, que bom que você está aí.”
“Tia, você está aqui.”
Respondeu, ao mesmo tempo comovida e orgulhosa:
“Muito prazer, 3° Ano B. Aqui é a tia Raquel, a nova tia Raquel. Raquel da Ressurreição."
“Oi, tia. A aula hoje é sobre o quê?”
“Eu me preparei para tanta matéria. Mas acho que a aula vai ser mesmo sobre medo, desafio, distância. E também, principalmente, sobre coragem, transformação, presença. Acho que vai ser uma aula sobre cruz, pessoal. Uma aula sobre Páscoa.”


Conto de Maria Amélia Elói

Share




0 comentários:

Postar um comentário