“Até o final da quarentena, todos
os professores da nossa escola deverão atender os alunos por meio de videoaulas.
O treinamento na nova plataforma de ensino começa hoje à tarde. Na próxima
quarta-feira vocês já deverão estar capacitados para reassumir suas turmas. A
escola voltará a funcionar, só que virtualmente, neste primeiro de abril. Serão
pelo menos dois meses de exposição de conteúdo à distância. As horas on-line serão contabilizadas no
calendário letivo como aulas dadas”.
Após ler aquele meigo recadinho despachado
pela coordenadora pedagógica, Raquel tomou um suco de maracujá com sal de
fruta, mas que de nada ajudou na digestão da novidade. Depois de um tempo
silente e pensativa, dobrada em seu afligimento particular, nossa querida
professora entrou em pânico, desferindo lamúrias em série pela casa: “Se eu não
sei tirar nem selfie, se não baixo
aplicativo no celular, se nunca fiz curso à distância, se sempre lecionei olhando
nos olhos das minhas crianças, se gosto do burburinho das turmas, se nada disso
está no contrato de trabalho, se é tudo tão difícil e diferente, se não quero
virar youtuber, proftuber... Não consigo. Não quero. Vou pedir demissão”.
Vendo a agonia da esposa, Natan veio em seu socorro: “Calma, meu bem. Você
aprende”.
“Aprender a ser tecnológica
assim, de supetão? Esse povo está doido”.
“Raquelzinha, lamento informar,
mas nós não temos escolha. Você vai ter de se adaptar, pelo bem da nossa
família”.
“Está tudo implodindo, Natan. Você
não vê que é a minha ruína?”
Raquel sentiu raiva da profissão
que escolheu, das inovações impostas goela abaixo, das transformações digitais,
de estar sendo obrigada a sobreviver no século XXI, de ter de aturar modernidades
e ouvir discursos clichês de resiliência, de haver contratado outrora conselhos
de coachings e de psicólogos e de
haver inclusive comprado e lido livros de autoajuda. Sentiu corar a cútis, sentiu
tremer o tônus, sentiu ferver o ódio pelo vírus e por todo o ônus que a oprimia.
E pranteou, em grossas lágrimas e estranhos urros, sua débil condição.
Lalá, a filha de sete anos, acordou
meio assustada com aquele barulho incomum. “Mãe, cadê meu leitinho com Nescau?”
“Hoje não tem leitinho, não tem
almoço, nem lanche, nem brincadeira, hoje não tem diversão. Você está me vendo,
mas não estou aqui. Não conte comigo para mais nada nem hoje nem nos próximos
dias.”
“Que isso, mãe? Você está com aquela
doença?”
“Não, Lalá. Sua mãe está
preocupada porque vai ter que aprender a ensinar pela internet.”
“Aula pelo computador? Legal,
mãe. Queria que minha professora ensinasse desse jeito.”
“Ela deve estar se preparando
também, Lalá, mas pra ela vai ser fácil. Ela é mais antenada que eu para essas
coisas de informática.”
“Natan, já pensou o gato pulando
no meu notebook na hora da aula? Os vídeos
rodando e rodando e rodando sem carregar cem por cento, já que nossa internet é
fracotinha? Meus alunos, a coordenadora, a diretora vendo você desfilar pela
casa sem camisa, de bermudão ou de cueca puída? Ai, que vergonha. O pai da
Júlia, aquela aluna superdotada, insistindo para assistir às explicações junto
da menina? Já pensou a meninada toda ensaiando Melim ou Anitta e eu não
conseguindo parar a cantoria?”
“Calma, mulher. As ferramentas de
ensino não devem ser assim tão complicadas. Você não admira tanto a Jana, que
faz teletrabalho há tanto tempo? É a sua vez de ficar moderna, de trabalhar sem
sair de casa.”
“A Jana não é professora. Ela é jornalista.”
“Mãe, eu sei tudo. Te ajudo com a
internet.”
Quando, enfim, chegou o momento
de assumir a sala de aula virtual ─ ainda como que movida pela
iminência do fracasso, pensando seriamente em fugir ─, viu e ouviu pintar na tela,
como mágica, um a um, cada rosto, cada voz da turminha. Criança é treco tão
cheio de vida! Criança é claro que é milagre!
A educadora respirou fundo. Estava,
enfim, diante, bem dentro do universo cibernético que tanto a havia testado e
consumido.
“Oi, tia Raquel.”
“Estou te vendo, tia. Você está
me vendo?”
“Tia, que bom que você está aí.”
“Tia, você está aqui.”
Respondeu, ao mesmo tempo comovida
e orgulhosa:
“Muito prazer, 3° Ano B. Aqui
é a tia Raquel, a nova tia Raquel. Raquel da Ressurreição."
“Oi, tia. A aula hoje é sobre o quê?”
“Eu me preparei para tanta matéria. Mas acho que a aula vai ser mesmo sobre medo, desafio, distância. E também, principalmente, sobre coragem, transformação, presença. Acho que vai ser uma aula sobre cruz, pessoal. Uma aula sobre Páscoa.”
Conto de Maria Amélia Elói
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