O homem acordou, cheio de dores em todo o corpo e apercebeu-se
do braço engessado. Lembrava-se vagamente da ambulância e do aparato na entrada
das urgências. Apalpou o volumoso penso que tinha numa das orelhas e grunhiu
uma praga.
Gemendo, sentou-se na cama e olhou em volta; havia mais três
leitos, cujos ocupantes dormiam a sono solto. Um deles ressonava ruidosamente.
Queixoso, pousou os pés no chão e calçou os chinelos que
estavam ao lado do leito. Era um homem de compleição forte, quase gordo, de
sessenta e um anos, mas com a cabeça coberta por uma farta cabeleira branca.
Caminhou ao longo da cama, apropriou-se da canadiana do vizinho e cutucou-o rudemente
com ela, para que parasse os roncos. Depois, apoiado no objeto roubado com o
braço são, dirigiu-se para o corredor, para responder à urgente vontade de
urinar.
Caminhava com dificuldade, apoiado na canadiana, ao longo do
corredor do hospital, quando, atrás dele, saída das sombras em passo apressado,
avançou uma mulher, aproximadamente da mesma idade. Também tinha hematomas no
rosto, a cabeça ligada e dois dedos de uma mão com talas.
Assim que o homem chegou à porta do WC, apercebeu-se da
presença da mulher e fez uma expressão de terror, quando ela lhe lançou o cotovelo
sob o queixo e premiu-lhe a laringe sem piedade. Entraram ambos de rompante
pelas instalações sanitárias, sem que ele conseguisse soltar um gemido.
Lá dentro, ele bateu com a cabeça na parede com força. Com o
pé, ela empurrou a porta para que não fossem vistos do exterior e começou a socá-lo
com toda a força, enquanto ele tentava proteger o rosto, sem sucesso. Lutaram
pela canadiana e quando ele soltou um grunhido, pela garganta magoada ela
principiou a dar-lhe joelhadas nos genitais, até que ele se vergou. Agarrou-o
pela gola do pijama e puxou-o com toda a força, com a cabeça contra o ferro de
apoio, ao lado da sanita e o homem caiu desacordado.
Ofegante, olhos desvairados de fúria, ela espreitou para o
exterior, verificando se os ruídos não tinham chamado a atenção de ninguém. Em
seguida, ajoelhou-se sobre o peito do homem e tapou-lhe o rosto com a toalha,
pressionando sobre o nariz e a boca. Ao fim de uns segundos, ele começou a
debater-se, mas ela conseguiu mantê-lo imobilizado o tempo suficiente, até que
parasse de se mexer.
Saiu das instalações sanitárias, a transpirar, cabelo
desalinhado e em passo rápido, para voltar à ala que lhe competia.
Para saber quem eram estas duas pessoas e qual a animosidade
que movia a mulher, para uma atitude tão violenta, teremos de recuar ao dia
anterior.
***
Gabriela era uma
mulher geniosa, ectomórfica, a rondar os sessenta anos. O seu rosto, de linhas
finas, prematuramente envelhecido, deixava as pessoas surpreendidas, com o
contraste da agilidade com que se movia. Naquela manhã, estava corada e os seus
olhos soltavam chispas, quando chegou ofegante à porta da casa de Daniel, o seu
ex-marido. Com o punho fechado, bateu fortemente por várias vezes, gritando o
nome daquele que, em tempos, partilhara a vida com ela.
Daniel vivia desafogadamente, como se podia atestar pela moradia,
numa zona cara da cidade e a ocupar uns bons metros quadrados de terreno
caríssimo. Reformado da direção de uma empresa pública, a pensão era
suficientemente generosa para não lhe faltar nada.
— Gabriela?!? — Perguntou ele, surpreendido, no seu fato de
treino de andar por casa, bem recheado de carnes. — Que se passa?
— Que se passa, seu monstro? — Ela cuspiu a pergunta. — Que
se passou, seu porco! Que aconteceu debaixo dos meus olhos?
— Espera! — Ele tentou acalmá-la. — Entra e sossega,
explica-me tudo, mas cá dentro.
— Não queres escândalo, é? — A mulher mantinha o tom de voz
alto. — Tens medo de que os teus vizinhos saibam o filho da p** que tu és? —
Ato contínuo, tentou esmurrá-lo no rosto.
Ele agarrou-a pelos pulsos e puxou-a para dentro de casa,
enquanto fechava a porta com o pé. Estavam num pequeno átrio de entrada, ao
cimo de umas escadas que desciam para uma elegante sala de estar.
— Acalma-te! — Gritou-lhe, sacudindo-a. — Que diabo! Que te
aconteceu, julgava que estava livre das tuas fúrias!
— Estive hoje ao telefone com a minha filha! — Ela começou,
enquanto lhe ia dando estaladas, que ele nem sempre conseguia evitar. — Com a
NOSSA Alice, seu cabrão! — Continuava a espancá-lo. — Ela contou-me porque
tinha tanta pressa em ir para Londres! Está a divorciar-se agora do marido, por
não consegue, nunca conseguiu ter relações normais com ele, por tua causa!
— Que te contou ela? — Ele defendia-se como podia. — A Alice
é uma mentirosa, já sabes!
— Não! Mentiroso és tu! És um demónio, um monstro! Ela tinha
medo de ti e eu não percebia porquê, pois parecias tão carinhoso! — Gabriela
chorava e os tabefes transformavam-se em murros bem direcionados. — Quando te
deixei, nunca teria imaginado que essa tua cabeça porca, esses teus olhos
lúbricos e nojentos se haveriam de pousar na tua própria filha! Julgava que as
porcarias que viviam nessa mente tortuosa e doente estavam-me destinadas, como
castigo de algo mau que pudesse ter feito, não para uma criança inocente!
Porco, cabrão, filho da p**!
— E que querias, sua vaca anorética e histérica? — A atitude
dele mudou radicalmente, enquanto devolvia os golpes dela com violência. —
Desde que ela nasceu, só tinhas olhos para ela! Desprezavas-me e já não querias
fazer as coisas, que gostavas tanto de fazer comigo!
— Gostava de fazer?!? — Gabriela agarrou-se como pôde à
farta cabeleira alva e sacudiu-o. Por instantes ficaram um em frente ao outro,
como que a decidir o que fazer a seguir. — Eu amava-te, seu cabrão pedófilo!
Sujeitava-me porque te amava, mas depois comecei a odiar tudo aquilo que me
fazias! Não era natural as coisas humilhantes que me obrigavas a fazer e eu só
soube isso quando conheci um homem a sério e não um frouxo, que só se conseguia
excitar causando dor e sofrimento.
Daniel acertou-lhe um soco violento que a atirou contra uma
credencia e derrubou a jarra e vários objetos de vidro que lá se encontravam.
Ele aumentou a pressão com dois tabefes que a prostraram no chão. Seguidamente
baixou-se e começou a apertar-lhe o pescoço.
— Lembras-te? — Sussurrou-lhe ao ouvido, sentindo-se
excitado, enquanto ela se debatia e ele aumentava o aperto. — Quase até ser
tarde demais… as vergastadas nesse teu traseiro delicioso…
A jarra explodiu na cabeça dele e Gabriela libertou-se,
pontapeando-o no rosto.
— Cabra selvagem! — Daniel atirou-se para cima dela, com
sangue a correr pelo rosto e começou a rasgar-lhe as roupas, enquanto lhe prendia
os braços. Deu-lhe uma cabeçada no nariz, que a deixou atordoada. — Sabes? —
Desafiou ainda. — A Alice não valia nada, era em ti que eu pensava quando “a
comia”.
Num assomo de energia desesperada, ela conseguiu dar-lhe uma
joelhada entre as pernas e ferrar-lhe com toda a força uma das orelhas. Louco
de dor, ele tentou erguer-se com a mulher agarrada de pés, mãos e dentes. Desequilibrados,
acabaram a rebolar pela escada, até ao último degrau, onde ficaram caídos sem
sentidos.
Se ideia de quanto tempo passara. Gabriela teve fraca
perceção de ser transportada na maca e das vozes nervosas de médicos e
enfermeiros. Estava já a recuperar lentamente a consciência, quando escutou os
restos de uma conversa entre duas enfermeiras: “… marido e mulher, sim. Quase
se mataram de porrada. Ela está aqui e ele do outro lado, na ala dos homens…”
Ela não abriu os olhos, mas logo ali, soube o que tinha de
fazer…
Manuel Amaro Mendonça
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