Aquele
defeito na mão nem chegaria a incomodá-lo. Era apenas uma deformidade,
decorrente de um acidente ocorrido na infância, que deixara sequelas. Mas era
determinante na hora de procurar emprego. Disfarçando o olhar, os
entrevistadores lançavam mão das mais variadas desculpas na hora de
dispensá-lo, sempre após uma entrevista em que sabia ter se saído bem. Mas ele
não desistia.
Já fazia dois
anos que fora demitido de seu último emprego. Trabalhava atrás de um
computador, e a anomalia, segundo sua
visão – a mão esquerda retorcida para trás –, não o impedia de realizar
qualquer tarefa. Mas a visita de alguns
investidores à empresa deixou seu superior numa
situação difícil, expressão utilizada por ele na ocasião. E atualmente os
entrevistadores, alguns mais discretos, outros diretos, acabavam por não o
contratar.
Tivera um dia
especialmente ruim. Após duas fracassadas entrevistas, das quais saíra com a
certeza de que não seria aproveitado, decidiu voltar para casa caminhando.
Passava a vida em revista, relembrando todas as circunstâncias que o tinham
levado àquela encruzilhada em que se encontrava.
Exausto devido
às sucessivas decepções, decidiu que iria deixar-se levar pela sorte, ao sabor
do vento. E foi o vento que lhe trouxe um panfleto amassado e encardido,
informando sobre a chegada de um circo à cidade.
Ele odiava
circos. E talvez aí estivesse a grande ironia de sua vida: vinha tentando,
havia algum tempo, trabalhar naquilo de que gostava. Mas o incidente que lhe
trouxera a deformidade, em circunstâncias que ele preferia esquecer, tinha lhe
tirado muito mais do que a vaidade ou a autoestima. Achava que nunca poderia
ser veterinário com aquela mão defeituosa. O isolamento que o acompanhou na
adolescência transformou-o num excelente programador, e o trabalho com
computadores era silencioso e individual, como ele preferia desde então. Mas
até esse lhe vinha sendo negado. Alijado de tudo aquilo de que gostava, optou,
num impulso masoquista, por visitar o circo.
Chegou ao
local duas horas antes do horário do espetáculo. Começou a caminhar pelos
arredores, tentando compreender o que, desde criança, justificava tanta
antipatia. Seu amor pelos animais, que em um passado remoto lhe rendera o
desejo de estudar Veterinária, era uma das principais razões pelas quais era
reticente em relação aos circos: os métodos cruéis de adestramento, aliados aos
maus-tratos, além da exploração dolorosa e comercial dos animais, fazia-o
vomitar. A alegria forçada de palhaços e trapezistas apenas completava o
quadro.
Ele jamais
entenderia, portanto, o que exatamente fizera com que se aproximasse daquela
tenda naquela tarde. O gerente, irmão do dono, recebeu-o cordialmente:
– Nossa bilheteria só abrirá daqui a uma
hora. – disse-lhe, com um sorriso complacente.
– Não vim comprar ingressos. Eu... Na
verdade, nem sei bem por que vim. – respondeu, com o máximo de sinceridade
que a situação permitia.
Nesse
momento, outro dos irmãos surgiu, comentando sobre a saída de um dos
empregados. Ele esbravejava, enfurecido, sem perceber a presença do estranho.
– Antônio, nós temos visita. Não seja
mal-educado com o nosso convidado. – o irmão tentou disfarçar a grosseria
do outro, sem sucesso.
– Quem? – o irmão, em sua fúria, não
enxergara o intruso. – Ah, sim, me desculpe. É que estou seriamente
comprometido com o espetáculo desta noite, e aquele irresponsável simplesmente
decide ir embora assim, sem avisar, no primeiro dia na nova cidade.
– Como você pode ver, todos têm problemas.
Passamos ao público a fantasia e o sonho, mas nossa realidade nada tem de
encantadora. – o gerente tentava amenizar a falta de polidez do irmão.
A mim, nunca me enganaram, pensou Diego,
embora sem verbalizar a visão negativa que tinha daquele mundo. Seu pessimismo
não justificava tal indelicadeza. E, de mais a mais, o gerente mostrava-se
simpático.
– Quem não tem problemas, não é? –
perguntou, mais por educação do que por solidariedade.
– O que você faz da vida? Trabalha em quê?
– Sou neurocirurgião – respondeu,
estendendo a mão defeituosa. – Desculpe.
– disse, tentando se retratar. – Não
costumo usar de sarcasmo gratuitamente. Mas não estou em um bom dia.
– Nem nós, como você pode ver. Mas me diga
uma coisa: gostaria de trabalhar conosco? – o olho do outro brilhou ao
fazer a pergunta.
Antes que ele
pudesse responder que sua raiva por estar desempregado só não era maior do que
a que nutria por circos, o outro o abraçou, dizendo: – Só hoje. Você fica na bilheteria, e conhece o pessoal. Amanhã dou um
jeito. Gostei de você.
A noite
transcorreu tranquilamente, e o trabalho na bilheteria, além de simples, não o
obrigava a travar contato com aquele mundo que ele julgava horrendo. Depois de
algum tempo desempregado, era quase agradável estar ali, e foi assim que
aceitou o convite de cobrir a bilheteria durante o mês em que o circo ficaria
na cidade. O horário permitia-lhe prosseguir em sua busca por um emprego fixo,
e garantia ao menos algum dinheiro naquele mês.
Os dias se
passavam lentamente, e Diego começava a se sentir à vontade ali. Embora
pairasse uma aura de desconforto que provavelmente remontava à sua infância,
ele agora conseguia se distanciar emocionalmente de tudo aquilo, e até
encontrar paralelos entre o dia a dia no circo e a vida. Algumas pessoas pensam
na magia do circo, e, ao descobrirem tudo o que existe por detrás, se
decepcionam. Com ele, deu-se o contrário: o que mais o incomodava na infância
era a falsa alegria, a artificialidade dos gestos e expressões. Perceber isso
no olhar dos que sorriam trazia-lhe uma profunda melancolia, a ponto de os pais
decidirem não mais levá-lo ao circo, uma das poucas atrações daquela cidade
pequena. O pai, que não admitia filho frouxo,
dera-lhe uma surra quando ele, ao ver um leão sendo intimidado pelo chicote do
domador, chorara e vomitara durante o espetáculo. Também ele, ao chegar a casa
naquela noite, fora castigado de forma implacável, por deixar seu íntimo
aflorar. Desde então, torcia pelos animais. Sentia-se muito mais próximo dos
leões e tigres enjaulados e subjugados, do que do humano que os oprimia. Nunca
fora a rodeios ou a touradas, mas os odiava com igual vigor. E talvez naquela
noite a sua decisão de se tornar um veterinário se tenha manifestado, de forma
latente. Mas até isso lhe seria negado, desde o acidente, como ele se referia ao episódio.
Agora, a
possibilidade de ver o circo em seus bastidores deu-lhe a dimensão humana de
cada uma daquelas pessoas que, por necessidade, tornam-se simulacros de
alegria, forçados e patéticos arremedos de empolgação. Cada um a seu modo,
também eles eram vítimas.
Atravessou o
pavilhão para buscar os panfletos de divulgação que deveriam ser distribuídos
naquela tarde. Os profissionais ensaiavam os números, alheios à sua presença. E
novamente a ideia de que o circo traduz o movimento do mundo voltou-lhe à
mente. Em suas divagações, via, nos domadores que tanto abominava, a tentativa
de supremacia do humano em relação ao animal, da cultura sobre a natureza, do
intelecto sobre o instinto. Embora fosse particularmente avesso a qualquer
sofrimento infligido aos animais, não podia deixar de notar, na covardia do
ato, um embate de forças em que o homem tentava, cruel e impiedosamente,
triunfar e domesticar o lado selvagem da criatura. Em sua escolha pela
veterinária, era o seu lado humano quem falava, tentando aliviar as dores dos
seres indefesos que ele um dia jurara defender. Mas isso era passado. Também
ele, mais jovem, tentara domar seu lado mais instintivo. Olhando de relance a
mão retorcida, lembrou-se do alto preço pago por isso.
Passeava
agora pelo espaço onde os malabaristas ensaiavam. Quantas vezes ele também não
se via, sobretudo no momento atual, tentando driblar malabares de adversidades,
em trejeitos quase impossíveis, na vã tentativa de equilibrar os diferentes
aspectos de sua vida?
Andou mais um
pouco, e seu olhar encontrou o do ágil trapezista que se atirava, destemido,
lançando-se de forma apaixonada pelos ares, deixando a segurança e lançando-se
ao risco, sem a certeza de que suas mãos encontrariam o outro trapézio a tempo.
Apesar de sempre ter corrido riscos calculados, sem nunca ter se permitido o
pulo corajoso, insensato, no vazio, sentia-se agora irmanado ao trapezista,
jogando-se, na desmedida dos que não buscam o outro trapézio por sabê-lo
inexistente.
A corda-bamba
era outra atração que o fascinava. Admirava a serenidade com que a artista
encarava o desafio, e as ameaçadoras oscilações ao longo do percurso, fazendo-a
pender para um dos lados, levando-a à queda derradeira, dispensavam analogias.
Em seu mundo, a corda-bamba constituía o seu percurso, e muitas haviam sido as
quedas, infelizmente nenhuma fatal. A morte teria sido melhor. A eterna
instabilidade das coisas só lhe trouxera a certeza da mão disforme,
desqualificando-o para a única coisa que talvez fizesse sentido.
Todavia,
apesar da clareza em relação ao circo trazida pelo novo emprego, havia um
aspecto com que ele não conseguia lidar: tratava-se do sujeito que comandava as
marionetes. Não sabia exatamente o porquê daquela antipatia, mas havia algo
naquele titereiro que o deixava completamente irritado. Um psicólogo talvez lhe
dissesse que, em sua analogia com o mundo real, talvez os títeres constituíssem
o seu maior incômodo, num simbolismo que carecia de explicações. Sentia-se
marionete desde que nascera sob a tutela daquele tirano, e pagara o preço pela
rebeldia.
O sujeito
levantou os olhos quando ele passou, retesando o corpo, numa demonstração
inconsciente de que o desconforto era mútuo. Recolhendo os bonecos – eram
quatro, no total, e, na opinião de Diego, cada um mais grotesco do que o outro –,
afastou-se rapidamente.
Diego
pressentia algo de estranho em relação àquele homem, embora não soubesse
precisar exatamente o quê. Em tempos politicamente corretos, em que aberrações
não são mais exploradas pela curiosidade humana e expostas em seu infortúnio nos
circos, era no mínimo desagradável contemplar as expressões faciais daqueles
bonecos, que pareciam saídos de um filme de terror. Suas expressões traduziam
espanto, dor, medo. Eram quase reais, de tão perfeitos. E, talvez por isso, tão
assustadores. Não entendia como aquele número fazia tanto sucesso entre as
crianças. Talvez, no fundo, sejamos todos originalmente cruéis, e o mundo nos
ensine a domar essa crueldade atávica.
Nos dias que
se seguiram, Diego chegou um pouco mais cedo, e, tomado por uma curiosidade
quase mórbida, decidiu descobrir o que aquele sujeito escondia. Toda vez que se
aproximava, o outro se afastava rapidamente. Era o único integrante do circo
que não pertencia à família, o que não o impedia de exercer uma influência
sobre os demais. No fundo, Diego tinha a impressão de que todos o temiam. E
ele, que não temera nem o pai, que lhe deformara a mão com golpes de martelo
como castigo à sensibilidade do menino, não seria intimidado pelo olhar gélido
daquele homem. Além disso, era a sua última semana com aquela gente, já que o
circo iria embora após o espetáculo de domingo.
Assim que
chegou à tenda, levantou cuidadosamente o pano que encobria o acesso aos vagões
onde ficavam os aposentos dos integrantes. O penúltimo era o do titereiro, que
era o único a não dividir o trailer
com ninguém. Diego entendia. Não os culpava por não quererem dormir ao lado
daquele sujeito.
Olhando ao
redor, para se certificar de que ninguém o vira, Diego abriu a porta do trailer. Boquiaberto, num instante
compreendeu por que todos o temiam. A verdade era por demais aterradora, e ele
teve de se controlar para não gritar. O ruído atrás de si revelou que ele não
estava sozinho ali.
...
Um ano
depois, o circo retornou àquela cidade. De posse dos folhetos de divulgação, as
pessoas vinham, atraídas pelas novidades que a propaganda anunciava.
– Olha, mamãe, aqueles bonecos ali. São
cinco! Olha aquele, que estranho! – gritou a criança, apontando o novo
boneco do show de marionetes, que tinha uma expressão aterrorizada e a mão esquerda
meio torta, virada pra trás.
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