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quarta-feira, 2 de março de 2016

O PENÚLTIMO VAGÃO



           Aquele defeito na mão nem chegaria a incomodá-lo. Era apenas uma deformidade, decorrente de um acidente ocorrido na infância, que deixara sequelas. Mas era determinante na hora de procurar emprego. Disfarçando o olhar, os entrevistadores lançavam mão das mais variadas desculpas na hora de dispensá-lo, sempre após uma entrevista em que sabia ter se saído bem. Mas ele não desistia.
Já fazia dois anos que fora demitido de seu último emprego. Trabalhava atrás de um computador, e a anomalia, segundo sua visão – a mão esquerda retorcida para trás –, não o impedia de realizar qualquer tarefa.  Mas a visita de alguns investidores à empresa deixou seu superior numa situação difícil, expressão utilizada por ele na ocasião. E atualmente os entrevistadores, alguns mais discretos, outros diretos, acabavam por não o contratar.
Tivera um dia especialmente ruim. Após duas fracassadas entrevistas, das quais saíra com a certeza de que não seria aproveitado, decidiu voltar para casa caminhando. Passava a vida em revista, relembrando todas as circunstâncias que o tinham levado àquela encruzilhada em que se encontrava.
Exausto devido às sucessivas decepções, decidiu que iria deixar-se levar pela sorte, ao sabor do vento. E foi o vento que lhe trouxe um panfleto amassado e encardido, informando sobre a chegada de um circo à cidade.
Ele odiava circos. E talvez aí estivesse a grande ironia de sua vida: vinha tentando, havia algum tempo, trabalhar naquilo de que gostava. Mas o incidente que lhe trouxera a deformidade, em circunstâncias que ele preferia esquecer, tinha lhe tirado muito mais do que a vaidade ou a autoestima. Achava que nunca poderia ser veterinário com aquela mão defeituosa. O isolamento que o acompanhou na adolescência transformou-o num excelente programador, e o trabalho com computadores era silencioso e individual, como ele preferia desde então. Mas até esse lhe vinha sendo negado. Alijado de tudo aquilo de que gostava, optou, num impulso masoquista, por visitar o circo.
Chegou ao local duas horas antes do horário do espetáculo. Começou a caminhar pelos arredores, tentando compreender o que, desde criança, justificava tanta antipatia. Seu amor pelos animais, que em um passado remoto lhe rendera o desejo de estudar Veterinária, era uma das principais razões pelas quais era reticente em relação aos circos: os métodos cruéis de adestramento, aliados aos maus-tratos, além da exploração dolorosa e comercial dos animais, fazia-o vomitar. A alegria forçada de palhaços e trapezistas apenas completava o quadro.
Ele jamais entenderia, portanto, o que exatamente fizera com que se aproximasse daquela tenda naquela tarde. O gerente, irmão do dono, recebeu-o cordialmente:
– Nossa bilheteria só abrirá daqui a uma hora. – disse-lhe, com um sorriso complacente.
– Não vim comprar ingressos. Eu... Na verdade, nem sei bem por que vim. – respondeu, com o máximo de sinceridade que a situação permitia.
Nesse momento, outro dos irmãos surgiu, comentando sobre a saída de um dos empregados. Ele esbravejava, enfurecido, sem perceber a presença do estranho.
– Antônio, nós temos visita. Não seja mal-educado com o nosso convidado. – o irmão tentou disfarçar a grosseria do outro, sem sucesso.
– Quem? – o irmão, em sua fúria, não enxergara o intruso.  – Ah, sim, me desculpe. É que estou seriamente comprometido com o espetáculo desta noite, e aquele irresponsável simplesmente decide ir embora assim, sem avisar, no primeiro dia na nova cidade.
– Como você pode ver, todos têm problemas. Passamos ao público a fantasia e o sonho, mas nossa realidade nada tem de encantadora. – o gerente tentava amenizar a falta de polidez do irmão.
A mim, nunca me enganaram, pensou Diego, embora sem verbalizar a visão negativa que tinha daquele mundo. Seu pessimismo não justificava tal indelicadeza. E, de mais a mais, o gerente mostrava-se simpático.
– Quem não tem problemas, não é? – perguntou, mais por educação do que por solidariedade.
– O que você faz da vida? Trabalha em quê?
– Sou neurocirurgião – respondeu, estendendo a mão defeituosa. – Desculpe. – disse, tentando se retratar. – Não costumo usar de sarcasmo gratuitamente. Mas não estou em um bom dia.
– Nem nós, como você pode ver. Mas me diga uma coisa: gostaria de trabalhar conosco? – o olho do outro brilhou ao fazer a pergunta.
Antes que ele pudesse responder que sua raiva por estar desempregado só não era maior do que a que nutria por circos, o outro o abraçou, dizendo: – Só hoje. Você fica na bilheteria, e conhece o pessoal. Amanhã dou um jeito. Gostei de você.
A noite transcorreu tranquilamente, e o trabalho na bilheteria, além de simples, não o obrigava a travar contato com aquele mundo que ele julgava horrendo. Depois de algum tempo desempregado, era quase agradável estar ali, e foi assim que aceitou o convite de cobrir a bilheteria durante o mês em que o circo ficaria na cidade. O horário permitia-lhe prosseguir em sua busca por um emprego fixo, e garantia ao menos algum dinheiro naquele mês.
Os dias se passavam lentamente, e Diego começava a se sentir à vontade ali. Embora pairasse uma aura de desconforto que provavelmente remontava à sua infância, ele agora conseguia se distanciar emocionalmente de tudo aquilo, e até encontrar paralelos entre o dia a dia no circo e a vida. Algumas pessoas pensam na magia do circo, e, ao descobrirem tudo o que existe por detrás, se decepcionam. Com ele, deu-se o contrário: o que mais o incomodava na infância era a falsa alegria, a artificialidade dos gestos e expressões. Perceber isso no olhar dos que sorriam trazia-lhe uma profunda melancolia, a ponto de os pais decidirem não mais levá-lo ao circo, uma das poucas atrações daquela cidade pequena. O pai, que não admitia filho frouxo, dera-lhe uma surra quando ele, ao ver um leão sendo intimidado pelo chicote do domador, chorara e vomitara durante o espetáculo. Também ele, ao chegar a casa naquela noite, fora castigado de forma implacável, por deixar seu íntimo aflorar. Desde então, torcia pelos animais. Sentia-se muito mais próximo dos leões e tigres enjaulados e subjugados, do que do humano que os oprimia. Nunca fora a rodeios ou a touradas, mas os odiava com igual vigor. E talvez naquela noite a sua decisão de se tornar um veterinário se tenha manifestado, de forma latente. Mas até isso lhe seria negado, desde o acidente, como ele se referia ao episódio.
Agora, a possibilidade de ver o circo em seus bastidores deu-lhe a dimensão humana de cada uma daquelas pessoas que, por necessidade, tornam-se simulacros de alegria, forçados e patéticos arremedos de empolgação. Cada um a seu modo, também eles eram vítimas.
Atravessou o pavilhão para buscar os panfletos de divulgação que deveriam ser distribuídos naquela tarde. Os profissionais ensaiavam os números, alheios à sua presença. E novamente a ideia de que o circo traduz o movimento do mundo voltou-lhe à mente. Em suas divagações, via, nos domadores que tanto abominava, a tentativa de supremacia do humano em relação ao animal, da cultura sobre a natureza, do intelecto sobre o instinto. Embora fosse particularmente avesso a qualquer sofrimento infligido aos animais, não podia deixar de notar, na covardia do ato, um embate de forças em que o homem tentava, cruel e impiedosamente, triunfar e domesticar o lado selvagem da criatura. Em sua escolha pela veterinária, era o seu lado humano quem falava, tentando aliviar as dores dos seres indefesos que ele um dia jurara defender. Mas isso era passado. Também ele, mais jovem, tentara domar seu lado mais instintivo. Olhando de relance a mão retorcida, lembrou-se do alto preço pago por isso.
Passeava agora pelo espaço onde os malabaristas ensaiavam. Quantas vezes ele também não se via, sobretudo no momento atual, tentando driblar malabares de adversidades, em trejeitos quase impossíveis, na vã tentativa de equilibrar os diferentes aspectos de sua vida?
Andou mais um pouco, e seu olhar encontrou o do ágil trapezista que se atirava, destemido, lançando-se de forma apaixonada pelos ares, deixando a segurança e lançando-se ao risco, sem a certeza de que suas mãos encontrariam o outro trapézio a tempo. Apesar de sempre ter corrido riscos calculados, sem nunca ter se permitido o pulo corajoso, insensato, no vazio, sentia-se agora irmanado ao trapezista, jogando-se, na desmedida dos que não buscam o outro trapézio por sabê-lo inexistente.
A corda-bamba era outra atração que o fascinava. Admirava a serenidade com que a artista encarava o desafio, e as ameaçadoras oscilações ao longo do percurso, fazendo-a pender para um dos lados, levando-a à queda derradeira, dispensavam analogias. Em seu mundo, a corda-bamba constituía o seu percurso, e muitas haviam sido as quedas, infelizmente nenhuma fatal. A morte teria sido melhor. A eterna instabilidade das coisas só lhe trouxera a certeza da mão disforme, desqualificando-o para a única coisa que talvez fizesse sentido.
Todavia, apesar da clareza em relação ao circo trazida pelo novo emprego, havia um aspecto com que ele não conseguia lidar: tratava-se do sujeito que comandava as marionetes. Não sabia exatamente o porquê daquela antipatia, mas havia algo naquele titereiro que o deixava completamente irritado. Um psicólogo talvez lhe dissesse que, em sua analogia com o mundo real, talvez os títeres constituíssem o seu maior incômodo, num simbolismo que carecia de explicações. Sentia-se marionete desde que nascera sob a tutela daquele tirano, e pagara o preço pela rebeldia.
O sujeito levantou os olhos quando ele passou, retesando o corpo, numa demonstração inconsciente de que o desconforto era mútuo. Recolhendo os bonecos – eram quatro, no total, e, na opinião de Diego, cada um mais grotesco do que o outro –, afastou-se rapidamente.
Diego pressentia algo de estranho em relação àquele homem, embora não soubesse precisar exatamente o quê. Em tempos politicamente corretos, em que aberrações não são mais exploradas pela curiosidade humana e expostas em seu infortúnio nos circos, era no mínimo desagradável contemplar as expressões faciais daqueles bonecos, que pareciam saídos de um filme de terror. Suas expressões traduziam espanto, dor, medo. Eram quase reais, de tão perfeitos. E, talvez por isso, tão assustadores. Não entendia como aquele número fazia tanto sucesso entre as crianças. Talvez, no fundo, sejamos todos originalmente cruéis, e o mundo nos ensine a domar essa crueldade atávica.
Nos dias que se seguiram, Diego chegou um pouco mais cedo, e, tomado por uma curiosidade quase mórbida, decidiu descobrir o que aquele sujeito escondia. Toda vez que se aproximava, o outro se afastava rapidamente. Era o único integrante do circo que não pertencia à família, o que não o impedia de exercer uma influência sobre os demais. No fundo, Diego tinha a impressão de que todos o temiam. E ele, que não temera nem o pai, que lhe deformara a mão com golpes de martelo como castigo à sensibilidade do menino, não seria intimidado pelo olhar gélido daquele homem. Além disso, era a sua última semana com aquela gente, já que o circo iria embora após o espetáculo de domingo.
Assim que chegou à tenda, levantou cuidadosamente o pano que encobria o acesso aos vagões onde ficavam os aposentos dos integrantes. O penúltimo era o do titereiro, que era o único a não dividir o trailer com ninguém. Diego entendia. Não os culpava por não quererem dormir ao lado daquele sujeito.
Olhando ao redor, para se certificar de que ninguém o vira, Diego abriu a porta do trailer. Boquiaberto, num instante compreendeu por que todos o temiam. A verdade era por demais aterradora, e ele teve de se controlar para não gritar. O ruído atrás de si revelou que ele não estava sozinho ali.
...
Um ano depois, o circo retornou àquela cidade. De posse dos folhetos de divulgação, as pessoas vinham, atraídas pelas novidades que a propaganda anunciava.
– Olha, mamãe, aqueles bonecos ali. São cinco! Olha aquele, que estranho! – gritou a criança, apontando o novo boneco do show de marionetes, que tinha uma expressão aterrorizada e a mão esquerda meio torta, virada pra trás.

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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