Perdido naquele
inóspito lugar, ele se debatia procurando livrar a cabeça que ficara presa
entre os galhos de um arbusto um tanto ressecado pela aridez da região. Nervoso
ante o fracasso das tentativas e temendo pela possível asfixia, berrou por
alguns minutos, na vã esperança que o seu pastor o encontrasse, cordeiro
desgarrado e rebelde, fugitivo na intenção de conhecer o mundo que ele
desconfiava não estar restrito ao rebanho do qual pertencia. Empenhara fuga
sorrateira, escalando aquele monte ausente de qualquer pasto ou água com a qual
pudesse acalmar a sede provocada pela ansiedade da aventura. Quanto mais se
afastava do nível do mar mais as sensações de privação de fluidos e alimentos
provocavam o seu corpo, até que, diante de um solitário arbusto esquecido no
meio da imensidão de pedras e terra ressequida, os cuidados foram deixados de
lado e, por consequência ali ele se encontrou aprisionado a própria sorte.
Fazia horas que o
incidente ocorrera e o cansaço já começa a abatê-lo. As pernas doíam, assim
como o pescoço apertado entre os galhos do arbusto. Sentiu arrependimento pela
ousadia da fuga. Melhor faria se fosse obediente como os outros cordeiros e se
mantivesse cortês, servil à família de pastores zeladora do rebanho. Porém,
temia o sacrifício e a morte que tantas vezes presenciara. Nem só de lã e leite
eles cordeiros tinham serventia. Eventualmente, um ou outro era abatido em
rituais estranhos ou mesmo para a carne fornecer alimento aos pastores e aquilo
o revoltava. Tanto bem eles cordeiros
faziam à família, dando o sustento necessário para a sua sobrevivência e, como
prêmio alguns recebiam a degola na ponta da faca. Sua vontade em desbravar o
mundo aliada ao temor da morte, para ele injusta, reforçaram a decisão da fuga.
Estava quase
desistindo, aceitando passivamente o seu fim quando percebeu duas figuras
humanas aproximando-se. Imaginou que
talvez fosse o pastor com um dos seus filhos que seguira o seu rastro marcado
no chão infértil daquele monte e seu coração encheu-se de esperança pela
salvação. Pensou em berrar para que a dupla o localizasse, mas, á medida em que
os dois humanos se aproximavam, não distingiu em nenhum deles alguém conhecido,
e preferiu, assim, exercer a prudência. Tratava-se de um homem já entrado na
velhice, acompanhado de um jovem imberbe. O rapaz trazia entre os ombros um
pesado feixe de lenha que o encurvava a cada passo. Um pouco a frente, apoiado
em um cajado, vinha o ancião, levando um cutelo na mão esquerda.
Pararam cerca de 100
metros do arbusto que mantinha o cordeiro aprisionado. Descarregaram seus
pertences e iniciaram desanimada confabulação. Seguindo as ordens do mais
velho, o jovem começou a recolher pedras de tamanhos medianos e dispô-las de
modo a formar uma mesa retangular. De onde se encontrava, o cordeiro atinou que
a construção lembrava os altares onde seus companheiros de rebanho eram
eventualmente sacrificados naqueles inexplicáveis rituais de fogo que ele tanto
temia e, assustado, procurou ocultar-se ainda mais no arbusto que, antes
carcereiro, agora lhe servia como protetor.
Foi quando o tom da
conversa entre os homens pareceu sofrer certa transmutação. O cordeiro divisou
no semblante outrora sereno do ancião sinais de desespero enquanto o rapaz
metamorfoseava em sua face a obediência decepcionada. Não compreendeu o
cordeiro a atitude do menino quando se deixou de modo resignado que o velho o
amarrasse. Os dois caminharam para o altar improvisado e o jovem pousou sua
cabeça sobre imitação de távola. Agora, o cordeiro observava que os dois
choravam. Parecia também que os céus cairiam em pranto visto o tom pesado das
nuvens cinza-chumbo que o vento carregava para o monte. O velho rezava. O jovem
também parecia em oração. O cordeiro, prisioneiro em seu esconderijo, esperava
curioso, o desenrolar dos acontecimentos.
Viu o cordeiro o braço
direito do velho tomar o cutelo e posiciona-lo à altura do pescoço do rapaz.
Misto de dúvida e horror passeou por sua mente. Acaso os homens sacrificavam-se
entre si? Resoluto, o ancião levantou o cutelo e mirou a cervical do jovem,
pronto para o golpe final. O terror tomou-lhe de assalto e o animal deixou
escapar um berro que se espalhou pelo lugar através do vento que preludiava uma
tempestade.
O velho então estancou
a pancada derradeira e descobriu o cordeiro preso a armadilha natural do
arbusto. Uma alegria incontida tomou o seu ser, deixando o animal ainda mais
desnorteado com os acontecimentos que presenciava. Enquanto chorava, levantando
em conjunto as mãos para os céus em agradecimento, dirigiu-se para o altar de
sacrifícios no intuito de libertar o rapazinho trêmulo diante da morte que em
segundos se fizera vida em razão de um golpe abortado. Os dois se abraçaram e
encararam o animal. O cordeiro sentiu-se aliviado. Por algum motivo, ele havia
feito o ancião mudar de ideia e não sacrificar o jovenzinho e, em
contrapartida, seria ele libertado como prêmio.
Os dois homens
cuidadosamente separam os galhos, livrando o animal da incomoda prisão mas, ao
invés da liberdade, o cordeiro foi surpreendido pelas cordas amarrando suas
patas. Compreendia agora o que iria se suceder enquanto era levado para o
altar. Berrava em desespero diante do pavor pela morte que se aproximava. Bando
de malditos, raça vil a humana, bradava mentalmente. Amaldiçoou aqueles homens
e seu olhar, longe do perdão, denotava o mais extremo ódio quando o cutelo
atingiu seu pescoço. Sentiu o sangue molhar o pelo alvo a ainda teve tempo de
perceber e o cheiro nauseabundo das suas carnes começando a serem consumidas
pelo fogo antes de perder por completo a razão.
2 comentários:
Muito bom! A sorte de Isaac foi a desdita do cordeiro.
Só acho que Abraão não mudaria de alvo, sem ordem superior. A ordem que trazia era para sacrificar o primeiro alvo. É fácil de acrescentar e pode render mais umas lucubrações interessantes do cordeiro do sacrifício...
Observação pertinente, Joaquim. Grato pela leitura!
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