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sexta-feira, 18 de março de 2016

ESTRANHAMENTOS



          Continua, vai fazendo a caneta passar por cima destas páginas brancas, é tão bonito vê-la deslizar, ela escorre, gostosa, joga a tinta e recobre o branco, dá forma, deixa tudo bonito também. Eu não estou tão mal assim, consigo ver o azul em cima do branco, vejo tudo nítido agora, vou poder contar, vou contar e colocar tudo entre os meus guardados, na arca maior aqui do quarto, debaixo do cobertor azul que tricotei faz tanto tempo, quando achei que Felipe fosse me pedir em casamento, Felipe tão lindo, todo meigo, doce, nunca me tocou, eu dizia que não podia, me guardava intacta, e ele sempre foi respeitoso. Ninguém vai achar este caderno, e se encontrarem estarei bem longe destes móveis de madeira escura, esta colcha de piquê sobre a cama, o piano que Lúcia tocou por uns anos e que depois eu também tentei tocar, só para ter a certeza do meu fracasso. Estarei longe das xícaras de mamãe, inda intactas mesmo com ela morta há sei lá quantos anos, e longe de Múri, meu cachorrinho, velho como eu.

          Preciso dar um jeito, uma autorização especial para poder levá-lo, ele vai sucumbir se ficar aqui, sozinho, e talvez ele me proteja também. Estou com medo de todo mundo que vou encontrar por lá, na clínica, a verdade é essa, medo do que posso fazer, medo da semiconsciência em que ficarei com os remédios que irão me lançar estômago adentro, e só peço que sejam todos feios, médicos, médicas, enfermeiras, enfermeiros, todos bem horríveis, assim não haverá perigo. Eu sei, a feiura não é garantia de nada, mas pode ajudar, sempre ajuda, se forem bem horripilantes eu não farei nada, serei boa e logo voltarei ao normal, já passei da idade de fazer coisa feia, de pensar coisa feia, de querer coisa feia, mas, ah, um dia foi macio, quente, úmido, só que meu aniversário está chegando, vou completar 75 anos, minha vida está no fim, eu sei que falta pouco.

          Era feio e bom. Prima Mirtes, morta há uns anos de câncer no intestino e a quem nunca mais vi, desde o casamento de outra prima nossa, como chamava mesmo? Acho que Vânia. Naquele dia na igreja mal a cumprimentei, não quis ficar ao lado dela durante a missa, mesmo ela se enfiando entre mim e tia Dorita, pedi licença para procurar um banheiro e ao voltar fui para o outro lado da nave, perto de vó Cleide, em sua cadeira de rodas e quase nenhuma consciência. A gente era nova ainda, naquela época. Depois Mirtes casou, teve uma filha, logo o marido trocou por outra e ela criou a menina sem pai e quase sem dinheiro. Nunca estudou, acabou ganhando uns trocados como vendedora, a filha virou vendedora também. Houve época em que andavam praticamente na miséria, mas eu nunca quis dar nada, ia parecer paga ou criar mau costume, nessas coisas tem que ser frio, não pode muita pena senão estraga tudo, a pessoa acostuma e nunca mais procura se virar. Meu pai sempre dizia isso no caso da tia Zefa, eu lembro. Mamãe achava absurdo, como um homem que tinha dinheiro feito ele deixava a irmã passar fome? Mas papai era implacável: Zefa casou com o bêbado e inútil daquele marido dela, gastou todo o dinheiro que recebemos de nosso pai, agora tem que se virar. Se não vai arrumar homem que bote dinheiro na casa, que vá ela inventar um jeito. E ria sua risada grossa que era quase um sacrilégio, mas eu achava linda, mamãe só fazia o sinal da cruz e saía da sala, mas isso foi no tempo do antes, quando ele ainda vivia com a gente, depois morreu, como falaram, ou foi morar com a outra família, como eu acho até hoje.

          Se papai tivesse ficado conosco, minha vida tinha sido outra, não tinha começado do avesso, como começou, pra depois nunca mais se arrumar. Se papai tivesse escolhido nossa família – mamãe, Lúcia, eu, Joca –, eu teria me casado com Felipe, teria tido filhos e não sentiria o ventre seco e inútil me comendo por dentro. Lúcia teria tido o meu sobrinho, mas não daquele modo escondido. Teria levado sua gravidez ao sol, sem medo nenhum, teria ficado noiva, casado, hoje talvez estivesse viúva. E Joca não teria ido embora de nossa casa mal a gente chegou na cidade, procurando tão pouco mamãe ao longo dos anos que ela foi minguando até desaparecer, no céu sem estrelas daquela noite chuvosa em que seus passos foram pra outro rumo.

          Mas papai se foi e com ele viemos para cá, esta cidade cada vez mais feia e cheia de gente que me dá medo. Eu me assustei tanto, não tinha quintal, não tinha árvore, não tinha nada, mamãe deixou apenas que trouxesse a gata Zefina e proibiu-nos de falar o nome do papai. Eu tinha uns cinco anos e ele estava morto, devia de ter feito algo bem ruim, e foi com o tempo que eu percebi que essa minha podridão só pode ter vindo dele. Mamãe agora trabalhava o dia inteiro e não tinha tempo para nada. Joca também não, ficava pelas ruas e eu mal o via. Só Lúcia ainda ficava um pouco comigo, mas logo saía, ela sempre foi muito mais velha, mais livre, mais tudo, e eu ficava à solta pela casa depois que terminava minha lição e não queria mais minhas bonecas, Zefina roncando no sofá sem querer brincar também.

          Se Lúcia nunca tivesse tido a ideia, minha vida não teria sido esta. Eu era difícil de fazer amizade com as outras crianças, mas com carinho talvez pudesse ter levado uma vida igual à de todo mundo e não ouvisse tudo isso aqui dentro, na cabeça. Só que um dia, deve ter sido em 1950, 51, por aí, ela falou que eu ia a uma prima, para distrair, brincar um pouco, eu ia gostar. Eu tinha visto prima Mirtes poucas vezes até então, nos Natais, e fazia um tempo que nem isso. Morria de medo da prima perguntar por que a gente tinha vindo para a cidade, ou de que o nosso pai tinha morrido, por que a nossa casa agora era tão pequena, e eu não sabia o que responder para nenhuma dessas coisas, acabaria inventando tudo e dava medo a prima não acreditar. Ela era um ano e pouco mais velha, devia ter uns seis anos e meio, mas para mim parecia muito mais velha. Lúcia falou que tia Sônia fazia questão que eu dormisse lá, assim poderíamos brincar à vontade sem que ninguém precisasse sacrificar o final da tarde para me buscar. No dia seguinte, ela ou Joca viria me pegar. Deu quase pânico saber que ia dormir em uma casa estranha sozinha, mas procurei me acalmar lembrando as palavras de mamãe, que sempre dizia que eu precisava ser uma mulher corajosa, que não podia ter tanto pavor da vida como ela, que era preciso enfrentar o mundo, ser bem valente e não depender de homem nenhum para nada.
          Lúcia preparou uma bolsinha para mim, com roupas e o pijama, e logo a campainha tocou, era tia Sônia. Na ida para a casa delas, o que predominou por muito tempo no trólebus foi um clima desagradável, minha tia tentando forjar o entrosamento entre duas crianças tímidas que não se viam com frequência. Ao chegar, fizemos um lanche e eu procurei comer tudo para não fazer feio. Depois desse lanche, é cada vez mais difícil ordenar as coisas, na minha cabeça, minha lembrança. O cheiro de goiaba pela cozinha fazendo que eu sonhasse com um mundo cheio delas, ou então que existisse um perfume de goiaba, pra gente passar no pescoço e ficar sempre cheirando doce, que nem na fazenda, antes. E o sorriso na cara magra da tia, que deixava suas gengivas à mostra, seus dentes feios, tortos, procurando fazer uma cara amigável, mas vindo com aquela proposta que me assustou.
          Iríamos a um centro espírita. Eu não tinha a menor ideia do que isso significava, só que o nome preocupava, parecia coisa bem errada. Titia falou que era um lugar bonito e tranquilo, mas eu ficava pensando se mamãe sabia, se ela deixaria, se ficaria brava. Fomos. O lugar não era grande e tudo era branco. As pessoas estavam vestidas de branco, as toalhas nas mesas eram brancas e eu não entendia nada do que falavam. Não era como o padre na missa, eram umas vozes enroladas, baixas, os olhos pareciam não olhar pra lugar algum, giravam desordenados. Minha tia quis que eu me aproximasse de uma das mesas e falasse com as pessoas, mas não consegui falar nada, só olhar para o chão, que era escuro quase preto, e escutei dizerem coisas, não compreendi. Depois fomos embora, o medo diminuindo, até um orgulho de ter ido em um lugar que mamãe não conhecia, ter enfrentado uma coisa estranha.
          Não lembro se houve banho, tampouco do jantar ou das brincadeiras, nem mesmo da hora de dormir, o boa-noite da tia Sônia, ou a chegada de tio Alfredo, seu bigode já grisalho e muito grosso. Nada disso. Também não sei se estávamos dormindo mesmo, no profundo, ou apenas começando a adormecer, mas não deve ter sido em plena vigília, talvez naquele primeiro estágio do sono, ainda muito leve, que já é sono mas não parece. Muitas vezes, nestes anos, procurei lembrar de forma precisa a disposição dos móveis do quarto, mas as imagens foram cada vez sumindo mais. Dormíamos em duas caminhas, ou uma caminha e um colchão no chão? O engraçado é que nunca deixei de me lembrar de um ângulo de mirada para o quarto, a partir da porta de entrada, à direita, em que as camas (ou a caminha e o colchão) ficavam à esquerda, os móveis de madeira muito clara, havia um criado-mudo também, e uma luz alaranjada que devia vir do abajur em cima desse criado-mudo. Não sei se o abajur ficava sempre aceso, ou se tia Sônia tinha acendido por minha causa, para que eu não tivesse medo.
          Fosse na cama ou no colchão, de alguma maneira as coisas começaram. Era quente, molhado e bom, mas o tempo todo, sentindo nos dedos e junto a mim, sabia que estava fazendo algo muito feio. Prima Mirtes mexia em mim, eu nela, e uma se encostava e sentia na outra, esquentando, um calorzinho bom e que eu sentia vez em quando sozinha, mas em duas parecia melhor. Era suave, vagaroso, úmido, e não dava para parar enquanto não acabasse por si, do jeito que tinha começado, do nada. Mas enquanto acontecia, mesmo sentindo o gostoso que era, eu ficava imaginando se Mirtes sabia o que estava fazendo, por ser mais velha, se ela sabia que aquilo era muito ruim, ou se não tinha ideia de nada. Mais de uma vez mamãe tinha me pegado sozinha, debaixo das cobertas, e disse que aquilo não prestava, não era coisa de menina boazinha. Desde então segurava ao máximo e só escapava às vezes, assim, no banho. Aquilo, com a prima, devia ser um pecado imenso, que aquela luz alaranjada fazia ganhar ares infernais.
          Em algum momento acabou, voltamos para nossos lugares e dormimos. No dia seguinte mal conseguia olhar para Mirtes, que irritantemente agia como se nada houvesse ocorrido. Tampouco suportava o sorriso de tia Sônia perguntando se a noite tinha sido boa, se eu dormi bem, se não tive medo nem nada parecido. Agradeci mentalmente por Lúcia vir cedo me buscar e fui embora sem conseguir dar um beijo no rosto da prima. Minha irmã achou falta de educação, já ia implicando, mas titia falou deixa para lá, coisa de criança, tinham se dado tão bem, era preciso repetir a dose, promover a união familiar.
          Ao chegar, minha culpa era tão grande que eu precisava contar alguma coisa para mamãe. Quando ela voltou do trabalho, na impossibilidade de contar o todo, contei a parte: o centro espírita. Ela me aliviou, para eu ficar sossegada, não tinha sido nada demais, ela não sabia que iríamos, éramos católicos, mas aquilo não faria mal, eu podia ficar tranquila. Meu resto seria mesmo com Deus. Rezei bastante durante o banho, esfregando-me com força e certa violência, pedindo perdão pelo que eu não sabia ao certo que tinha feito, e à noite rezei mais. Precisei de muitos dias para tirar aquilo da cabeça, ir apagando aos poucos – mas não para sempre, como sempre soube.
          Queria ter fé completa, e não arremedo de fé, para me jogar nos degraus do confessionário, dizer tudo ao padre, ouvir o que tenho a cumprir e então me sentir liberta, não só desse primeiro, mas de todos os estranhamentos que seguiram, mas minha fé é só um pedaço de fé, falsa como sinto que estou sempre sendo toda falsa, não adianta padre, nem médico, nem psicólogo, terapeuta disso e daquilo. Eu sou feita desse jeito, ninguém consegue me aliviar, os remédios só fazem diminuir um pouco, mas as coisas nunca somem, elas só arrefecem, e inda por cima mal e mal.
          Meu sobrinho agora está chegando, desde moleque que ele bate a porta do carro parecendo ter ódio do mundo, eu posso ouvi-lo daqui de cima, Lúcia pediu que ele me leve, não pode mais ficar comigo, sua diabetes está alta, ela precisa de um ambiente tranquilo, parece que vai viver com ele e os netos. Está certo, tudo certo, ela merece a vida boa que teria tido se papai não tivesse ido embora e se eu não tivesse virado esse troço inútil que virei. Eu olho para as moças na rua e vejo que não tem tanto problema assim. Talvez, se fosse hoje, eu fosse uma pessoa como qualquer outra, eu só era um pouco diferente. Mas naquele tempo, e é isso que Dr. Joaquim precisa entender, naquele tempo não era, dava um medo imenso, um terror quase tão grande como o que sinto agora, sabendo que vou encontrá-lo de novo, Dr. Joaquim é sempre simpático, ele vem e me examina de pertinho, pergunta se voltei a escrever, quer saber o que estou fazendo, esse tipo de coisa perigosa, ele puxa meus olhos para baixo e para isso sinto seus dedos da mão quentes no meu rosto, meu coração fica rápido e eu tenho medo de ele perceber o meu medo, o que pode ser ainda pior, não vou parar de tomar remédio nunca, e se ao menos os remédios fizessem efeito, me permitissem esquecer de tudo, sumissem as falas aqui dentro, e mais o sangue que saiu há dois meses, quando fui fazer pela primeira vez um exame que tem um nome horrendo. Ultrassonografia trans-va-gi-nal. Rompeu, rompeu aí, e a médica que segurava o aparelho ficou sem graça, chamou uma assistente, uma olhava para a cara da outra e não sabia como podia ser verdade, eu não tinha assinalado o X da virgindade no papel e não podia ser verdade, mas era, eu perdi ali, naquele utensílio eletrônico, bege, forrado por uma vergonha de plástico que saiu ensanguentada, que nojo, como sou imunda, e logo minha cabeça não parava de ouvir as reprimendas, até mamãe me falava da vergonha que tinha de mim, para sempre, eu nunca a deixava descansar direito, por Deus, que culpa ela tinha de ter me parido desse jeito, eu não via que era eu a errada?
          Preciso aprender a me comportar, mesmo que já seja tarde demais, tenho que conseguir conversar com Dr. Joaquim, mesmo com os olhos doces dele. Ele não vai me fazer mal e eu não vou fazer mal a ele, não posso mais fazer mal a ninguém, não é? Não posso, não posso, falta pouco para acabar tudo, meu Deus, me perdoa, por favor. Meu sobrinho está subindo as escadas, iremos agora, a única coisa que não posso deixar de escrever aqui é que descobri numa revista que existe uma espécie de distúrbio do sono, um troço que foi diagnosticado há pouco tempo, chama “sexsomnia”, acho que é esse o nome. A pessoa faz sexo dormindo. Pode ser isso que eu tenho, que eu tive, sei lá, pode ser isso que acabou causando todo o resto que veio depois, as vozes, as pessoas todas aqui dentro. É feio falar, mas quem sabe Dr. Joaquim não confirma que é isso e me dá os remédios certos, se atacarmos a origem de tudo eu devo ficar boa, ainda deve dar tempo.
          Por Deus, que dê, é só o que peço.



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