O
mistério da arte renascentista
É
sempre com espanto que se toma consciência do tremendo salto da arte
do Renascimento, tanto em termos formais, como temáticos. Se certas
descobertas, como a perspetiva, explicam alguma excelência formal, e
o uso do óleo o brilho cromático e o rigor do pormenor, outras
vertentes deve ter havido — alguma teoria de base — para o
surgimento dos reconhecidos paradigmas da arte da Renascença. Há
autores que apontam o neoplatonismo emanado de Florença, como a
diferença que produziu uma atmosfera propícia na sociedade e nos
artistas.
Marsilio
Ficino (1433–1499) foi o testa-de-ponte desse movimento.
Encabeçando uma academia filosófica em Florença, teve o privilégio
de ter acesso a muitos textos manuscritos no grego de origem.
Traduziu a obra integral de Platão para latim, o que permitiu que o
Ocidente conhecesse um filósofo só acessível, até aí, a quem
soubesse grego. Traduziu outros autores que se inscreviam na linha
filosófica neoplatónica, além de textos de astrologia e de magia.
Toda esta amálgama de novos conhecimentos e influências levou-o a
teorizar uma nova religião que fazia a síntese entre os antigos
ensinamentos pagãos e o cristianismo. Entendia que aquelas ideias,
expressas naqueles textos da antiguidade, representavam uma
continuidade coerente que desembocava em Cristo. Encontrou identidade
entre os conceitos do platonismo e os do cristianismo e deu especial
ênfase ao conceito de amor, expresso em O
Banquete
de Platão que associou ao amor cristão de S. Paulo.
Este
“amor platónico”, todo contemplação das coisas divinas,
mesclado com a mitologia greco-romana e as especulações
astrológicas, foi uma inspiração para muitos artistas que, pela
primeira vez desde os tempos clássicos, se atreveram a representar
temas pagãos com formas pagãs e a nudez do corpo feminino, aplicada
a ninfas ou deusas, lida como beleza celestial. Botticelli é o
precursor dessa formulação. Em O Nascimento de Vénus, trata um tema
marcadamente pagão e expõe um corpo feminino nu, mas com tal
candura e imaculada beleza que, neste contexto neoplatónico,
poder-se-ia pensar tratar-se de uma virgem ou santa da imaginária
cristã.
Uma
Academia platónica em Florença
A
Florença dos Médicis recebeu, entre 1439 e 1445, o Concílio de
Ferrara-Florença, que intentava ultrapassar a divisão das igrejas
grega e latina. Falhada a aproximação, Cosme convenceu um filósofo
neoplatónico da comitiva grega, Plethon, a deixar em Florença
mestres que ensinassem a língua e a literatura gregas. Ficino —
filho do médico cirurgião de Cosme de Médicis — tornou-se um dos
alunos em 1456. Em 1462, por ideia de Plethon, Cosme, decidiu criar
uma academia que pretendia imitar a que fora criada por Platão em
Atenas, à frente da qual colocou Ficino, que se tinha distinguido no
conhecimento do Grego, e no entusiasmo pelas especulações
metafísicas.
Ficino
traduziu, para latim, toda a obra de Platão, que o Ocidente só
conhecia por traduções a partir do árabe, além de obras de
autores neoplatónicos como Plotino, Porfírio e Jâmblico. Fornecer
à Europa a possibilidade de conhecer esta importante e ignorada
fatia do pensamento filosófico foi um feito de importância nunca
demais realçada.
Ainda
antes de traduzir Platão, Cosme pediu-lhe que traduzisse uma cópia
que adquirira do Corpus Hermeticum,
isto é, os textos atribuídos a Hermes Trimegisto, figura lendária
sobreposta ao deus egípcio Toth, que se supunha conter os principais
ensinamentos dos antigos Egípcios.
Outros
textos das tradições da antiguidade — Zoroastro, Orfeu, Pitágoras
— mais o convenceram de que Deus falava aos Homens desde o princípio
dos tempos e de que todas estas tradições constituíam uma e a mesma
mensagem de Deus para os Homens. Para Ficino, estas teologias e
filosofias antiquíssimas inspiraram Platão e os seus discípulos e
sabia que «o platonismo teve seguidores entre os antigos escritores
latinos, os autores eclesiásticos primitivos e os filósofos
medievais árabes e latinos».
Uma
religião
pura
Ficino
percebeu a semelhança existente entre os relatos sobre Osíris e
sobre Cristo. Declarou que Hermes foi um profeta pagão que previu a vinda de Cristo. Pressentiu que o cristianismo era uma variante do
Corpus Hermeticum.
Muitas passagens dos textos herméticos lembravam passagens do
Evangelho de S. João, e Plethon e a sua escola sabiam que o
cristianismo não era tão “original” como a Igreja pensava. Com
o Corpus Hermeticum,
a Academia florentina recebia a “verdadeira bíblia”.
A
ideia de que Deus tinha feito revelações a todas as culturas, ao
longo dos tempos, constituiu o grande êxito do hermetismo. Cada
religião expressava essas revelações, mas num conhecimento
fragmentário. Havia que criar uma religião de concórdia de todas,
uma religião pura que harmonizasse os ensinamentos de Moisés,
Platão e Cristo. Acreditava que a verdadeira religião — o cristianismo — e a verdadeira filosofia — o platonismo — estavam em harmonia uma com a outra, pelo que defendia que Platão devia ser lido nas igrejas.
A
ideia de uma comunhão profunda de todas as crenças, de todas as
revelações, era consoladora. A sua “nova religião” pretendia
apenas devolver o cristianismo às suas origens. Provinda do
antiquíssimo Egito e concordando com as tradições pitagórica,
platónica, estoica, neoplatónica e outras mostrava sinais seguros de conter um saber assente em fundamentos sólidos.
A
religião cristã refundada seria o culminar daquelas revelações
contínuas de Deus, mas havia que encontrar a síntese de todas elas
e promover uma paz religiosa de todos os cultos. Esta ambição vinha
ao encontro dos sentimentos do círculo erudito dos Médicis que não
via com bons olhos os dogmas desatualizados da Igreja. Num
mundo ávido dos conhecimentos clássicos, que estava a colocar o
Homem no centro do mundo e a tomar nas mãos a sua modificação, os
conhecimentos que Ficino trazia à luz do tempo eram encarados quase
como revelações.
Do
amor platónico
Mais
importante para este estudo é a doutrina de Ficino sobre o amor.
Como nas outras suas doutrinas, Ficino combinou nesta fontes
diversas: foi buscar o amor da teoria platónica, expressa em O
Banquete, identificou-o com o amor
cristão (charitas),
bebido em S. Paulo, e terá juntado teorias antigas da amizade e
mesmo laivos do amor cortês medieval. Desenvolveu-o no seu
comentário a O Banquete,
intitulado De amor. Chamou-lhe
amor platónico
e terá tido uma influência extraordinária nos círculos eruditos
da época.
A
doutrina do amor constituía o tema inesgotável da Academia e a
fonte da influência exercida por esta na vida intelectual, na
literatura e nas artes plásticas do Quattrocento.
Muitos dos grandes artistas do Renascimento viram na teoria do amor
de Ficino grande compatibilidade com as suas visões básicas, mas,
mais importante, encontraram nela o segredo da sua própria criação
artística. «A enigmática dupla natureza do artista, a sua
dedicação ao mundo da aparência sensível e a sua contínua»
busca para além de si, pareciam ser compreendidas e justificadas
pela primeira vez. Como a do amor, a tarefa do artista consiste
sempre «em unir coisas que estão separadas» e são opostas:
procura o invisível no visível, o inteligível no sensível. O
artista sente a oposição dos elementos do ser e sente-se um
mediador. O fenómeno da beleza, como o do amor, só pode emergir
quando a mente se retira das formas externas da imagem. «A beleza é
um certo esplendor que arrebata até si a alma humana.»
Para
Ficino, a realidade é ordem e beleza, mas expressa-se por símbolos,
imagens, figuras. A “nova
religião” de Ficino usava amuletos e talismãs com intentos
mágicos, como no antigo Egito. Ficino escreveu extensamente sobre
estas técnicas e, em consequência, as pinturas começaram a ser
vistas como talismãs complexos, passíveis de aplicação mágica.
Alguma evidência da influência hermética em Da Vinci pode ser suspeitada na disposição dos discípulos em A Última Ceia. Agrupados em quatro grupos de três, podem corresponder ao Zodíaco dividido nos quatro elementos. Alguns autores acham que não há nenhum artista da Renascença que não tenha sido influenciado por Ficino e as suas doutrinas. Sabe-se que, pelo menos, para A Primavera, Botticelli consultou diretamente Ficino.
Sandro Botticelli foi acusado pela fação anti-herética e moralizadora do frade dominicano Savonarola de incorporar nas suas pinturas as doutrinas de Ficino e de ser discípulo dele. As obras Minerva e o Centauro, A Primavera, e O Nascimento de Vénus lidariam com temas ocultos e representariam práticas mágicas de obter influências planetárias pelas imagens.
O Nascimento de Vénus
Os
seres mitológicos clássicos tinham uma graça otimista vital, um
colorido de peripécias humano, pelo que os artistas encontravam
neles um filão atrativo. Juntamente com as entidades mitológicas
ancestrais, vinham os conceitos, que, harmonicamente se sobrepunham.
Para
Panofsky, o sentido pleno da palavra «renascença» só se
concretiza quando as antigas ideias, expressas nas figuras dos deuses
e heróis, são reunidas com as suas antigas formas. A fusão total
de ambas
terá sido atingida, pela primeira vez na arte florentina, com O
Nascimento de Vénus.
Segundo
a mitologia
greco-romana, Vénus nasce da espuma do mar, mar para onde Cronos
lançara os genitais cortados ao pai, o deus Urano. A cena parece
representar o momento desse nascimento. Vénus sustenta-se sobre uma
enorme concha, símbolo sempre associado a nascimento, vulva,
regeneração, batismo. A concha desliza sobre a rebentação e é
empurrada para a praia pelo sopro dos ventos: Zéfiro, vento morno de
Oeste; e Clóris, sua esposa, ninfa da brisa. É recebida pela
Primavera que tenta cobrir-lhe a nudez com um manto de flores e
folhas, ato que, aparentemente, os ventos tentam impedir.
A
inefabilidade da imagem impede de ver luxúria nesta representação
de um corpo feminino nu. Na realidade, não é uma mulher, é uma
deusa, a deusa da beleza. No enquadramento neoplatónico da atmosfera
que se vivia em Florença, podemos intuir que se trata da Vénus
celestial, residente unicamente na esfera do espírito — «que
nasceu só do céu, sem a intervenção de nenhuma mãe», como diz
Ficino — gémea da Vénus vulgar do amor humano. Emana uma beleza
quase intangível, etérea, de entidade “concebida sem pecado” e
intocada pela corrupção terrena. Na síntese platónico-cristã que
Ficino idealizou, não é improvável que, em certos círculos, possa
ter sido associada à Virgem Maria. Aliás, esta era uma obra de
palácio, a que só um círculo restrito da corte dos Médicis teve
acesso. A arte para as massas estava nas igrejas.
Uma
especulação
As
boas obras têm a virtude frequente de permitirem diversas leituras.
Perscrutando a posição “impossível” das pernas de Clóris (e
andando às voltas com os textos de Ficino), vem à ideia o mito da
separação dos sexos, expressa em O
Banquete
de Platão e comentado em De
Amor
de Ficino:
Em
tempos recuados, «houve três géneros de homens, não só varão e
fêmea; também um terceiro género formado por uma mistura de ambos.
A forma de qualquer homem era inteira (…) tinha quatro mãos e
quatro pernas; também dois rostos colocados sobre o redondo
pescoço». Como eram de ânimo soberbo e corpo robusto, quiseram
combater os deuses e subir ao céu. «Por isso, Júpiter cortou ao
meio cada um deles em sentido longitudinal, e de um fez dois».
«Desde o momento em que a natureza humana foi dividida, cada um
desejava recuperar a sua outra metade (…) Daqui nasceu o Amor
recíproco entre os homens, conciliador da sua antiga natureza (…)
Cada homem busca a sua metade, e quando a encontra (…) não suporta
nem um momento separar-se dela.» — Marsilio Ficino, De
amor,
disc. IV, cap. I.
Este
mito explicava em Platão, e em Ficino, o
sentimento de incompletude e o
desatino de procura de parceiro e de intransigente posse, no amor
entre os homens. É evidente a defesa da compossessão deste casal de ventos, apesar da “ligação imperfeita”. E é percetível alguma irritação, mas muita curiosidade por aquele ser possuidor da perfeição primordial.
Ao procurarem evitar que seja tapado, os ventos comprazem também a curiosidade do espectador e transmitem a mensagem de que é maior a beleza se não se cobrir a nudez na arte, nudez na arte que os inimigos de Ficino combatiam.
Crê-se
que na
obra são visíveis as influências, quer nos temas, quer nas
personagens, quer na conceção geral, das várias teorizações que Ficino produziu. Pode-se dizer que, não sendo um outro pai físico, foi certamente um pai espiritual.
Bibliografia principal:
CHASTEL,
André, Marsile
Ficin et l’Art,
Genève, Librairie E. Droz, 1954.
FICINO,
Marsilio, et al, Humanismo y
Renacimiento, Madrid, Alianza
Editorial, cop. 1986.
KRISTELLER,
Paul Oskar, Il Pensiero Filosofico de
Marsilio Ficino, Firenze,
Le Lettere, 1988.
LÉVIS-GODECHOT,
Nicole, «La "Primavera" et la "Naissance de Venus"
de Botticelli ou Le Cheminement da l’Âme selon Platon», in
Gazette des beaux-arts, nº
1491, Paris, 1993, pp. 167–180.
Joaquim
Bispo
Imagem:
Sandro Botticelli, O Nascimento de
Vénus, 1485.
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3 comentários:
Como é que um homem que fala pouco, escreve tanto e tão bem?
Silêncio, meditação, introspeção, observação, recolha, eu sei lá, dão uma excelente leitura dos mitos transformados em linguagem que se percebe.
Excelente a divisão do homem que procura a outra metade...
Abraço, continua, vou continuar a ler-te já que ouvir-te é muito mais difícil.
manelaperaltado
Eh, eh!
Obrigado por essa palavras que me sabe tão bem ler.
Concordo que me exprimo mais facilmente pela palavra escrita do que pela palavra falada. Daí, talvez essa minha imagem de indivíduo calado.
Em relação a este texto, as ideias foram quase todas colhidas na bibliografia; o meu mérito só se for o de síntese.
Se aceitas continuar a ler-me, vou continuar a aplicar-te duas doses mensais. Espero não te provocar uma reação alérgica. :)
Abraço!
Sou uma leitora curiosa sobre a vida e obra de Marcilio Ficino, Pico della Mirandola e toda a nova visão renascentista. Amei seu artigo, e vou ficar leitora assídua da revista. Obrigada. Beatriz Fiuza ( Fortaleza-CE)
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