Não tinha ido despedir-se e,
se lhe tivessem perguntado, teria dito: foi um acaso, uma conjuntura, tudo a
dispor-se para que não fosse e o relógio que não me despertou.
Margarida a justificar não
ter estado no cais, ela que nunca ficou a acenar lenços senão, muito criança, dependurada
na janela de um comboio, a mão de um a despegar-se da mão do outro, a humidade
cálida escorrendo, e depois irem-se esfumando os rostos e os corpos e a
paisagem: cada vez mais longe e, a crescer no peito, a espraiar-se pelo corpo,
os primeiros sinais da solidão e da saudade.
Margarida nunca viu mães e
esposas e irmãs, tias, amigas, namoradas, os xailes e os lenços e os saltos altos
e as saias acima do joelho ou o saia-casaco de bom corte, mulheres irmanadas num
mesmo desgosto tartamudeado em frases tontas e unhas roídas até ao sabugo.
Mães e noivas e namoradas e
esposas. Mulheres anónimas a chorarem filhos que partiam e filhos que tinham
ficado apenas um projecto ou com um pai que nunca iria conhece-los.
Margarida nunca foi esperar
nem despedir-se dos soldados.
Nem nunca esteve, o sol
ardendo-lhe o pescoço, numa daquelas cerimónias. Nunca viu a medalha ser colocada
no embargo vertical dum pai de filho morto, espetada na lapela dum fato
emprestado, negro como convinha à cerimónia e ao luto, ou no xaile muito preto
duma mulher com rosto de menina.
Margarida nunca presenciou.
O que soube, viu nos
documentários a preto e branco que passavam nos cinemas, antes de correr o
filme.
Tivesse sido de outro modo, se
Margarida tivesse vivido, podia afirmar: no dia em que fui despedir-me, chovia
na capital do império.
Ou podia dizer que o sol
escaldava.
Ou nem diria nada, que os
desgostos remetem a uma mudez a semelhar o patológico, mesmo quando embebidos
em rios de lágrimas.
Os soldados partiam.
Margarida só os conheceu
namoriscando: a cerveja rolando de um a outro e o fresco da sala de cinema e a
música troando numa matiné dançante e a certeza de que partir era ainda futuro.
Se tivesse estado num cais,
poderia afirmar que a chuva, quando caía, ensopava os que acenavam lenços muito
alvos, alguns com barras coloridas, e nenhum dos que acenava, e nem nenhum dos
outros, nem aquelas duas abraçadas num choro, nenhum deles saberia localizar o
seu José, o seu Fernando, o seu Manuel, na confusão que era o navio repleto de
homens que atulhavam a amurada, e até os barcos salva-vidas, como se pode ver
em fotografias da altura.
– Será este? Olha, é aquele!
E apontavam a tentar
adivinhar, cada um acenando no desespero de, muito em breve, não poder repetir
o gesto.
Margarida nunca esteve a ver
o navio desatracar devagarinho, e depois ir, muito lentamente, pelo Tejo
adiante, e ficar apenas um pontinho, apenas a ideia de navio, e nem navio nem
soldados na neblina que entretanto se formava, e as mulheres lancinando
aflitas: Henrique, Matias. Elas a chamarem os nomes de maridos e filhos e
outros parentescos ou apenas vizinhos; elas a virem despedir-se e clamando se
nunca mais voltariam a vê-los.
Margarida nunca veio embrulhada na
mole de gente, o cais a ser abandonado e ela a estranhar-se dum sentimento de
impotência semelhante ao que tinha sentido num dia em que, menina ainda, tinha
visto prenderem os cães numa carroça e ela, colada à parede do passeio
estreitinho, sem um grito, um choro, um nada mais que a descoberta daqueles
sentimentos: impotência e injustiça enrolados um no outro, e teria sido preciso
decorrer um tempo para que Margarida soubesse dar-lhes nome.
Ela nunca foi ver o navio
perder-se lá ao fundo onde o rio já não é senão água salgada e o farol parece
uma tartaruga com apenas um olho que viesse nadando para entrar na capital do
império e nunca mais chegasse.
Não viu os passos dos que
tinham vindo despedir-se a descolarem-se muito lentos e cada um ainda querendo olhar
o filho, o marido, o noivo, o irmão. O primo.
Margarida apenas viu nos
documentários e ouviu contarem-lhe.
Namoradas e mães, e nenhuma
sabia de futuros que já estavam inscritos no destino que começava, ali no cais,
a ser tecido, devagarinho.
Um dia, poderiam vir dizer-lhes:
morreu numa emboscada; desfez-se no rebentamento de uma mina; não sabemos ainda
quando chega o corpo.
Tivessem-lhe dado tal
notícia, e Margarida recordaria o cemitério dos coelhinhos que a coelha
desmamara, uma cruz de cana em cada cova; e lembraria as cachaçadas certeiras no pescoço
dos coelhos adultos, tal e qual as granadas que teriam rebentado
sob as viaturas.
E nem havia de traçar o sinal da cruz por nunca ter sido esse o seu hábito, mas releria as cartas que lhe tivessem
escrito, folhas muito finas, muito levezinhas, cada folha escrita na frente e
no verso. Cartas enormes, cada recanto da folha recoberto com palavras escritas
com letra miudinha para que coubesse e, ainda assim, ficara tanto por dizer.
Mas Margarida não teve
soldado de quem lesse folhas imensas recobertas de letras, linhas e mais linhas
de tinta que escorreria se ela chorasse. Palavras dolorosas. Uma, duas, muitas
folhas, e era quase certo que houvesse, a cair de entre todas, a metade rasgada
de uma outra.
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