A morte não é definitiva; a saudade, sim.
Depois daquela quarta invernal, ficou proibido sorrir lá em casa. Eu tinha nove anos, só nove, quando mamãe subitamente vetou as cambalhotas de fim de noite na cama dela. Punição deveras grave para a meninota que amava viravoltar de meia e pijama, misturando as pernas curtas às dos irmãos, mais compridas.
A comida do dia a dia foi ultrajada com força — sabor e variedades sofrendo prejuízo. Iogurtes de morango, sorvetes de flocos e bifes grossos não mais se viram na geladeira. A mesa retangular sonegou os copos coloridos. Até os super-heróis dos pratos desbotaram de repente, desapoderando o apetite.
Os bolinhos de arroz do sábado, sagradorados, retiraram-se de cena. Pensei que fosse situação temporária, que os coradinhos fritos voltariam logo ao cardápio. Até que um pedinte deu na nossa campainha e minha mãe foi à cozinha apanhar a máquina de moer.
— Pra que isso, dona Célia? — agarramo-nos todos ao trambolho que tanto nos alegrara.
— Mãe, não dá a máquina do bolinho — implorei, chorando.
— Não tenho força pra moer a mistura — ela disse, seca, sem brinco e sem batom. E entregou o aparelho, com manivela e tudo, ao mendigo, que certamente não sabia nem pra que aquele treco servia.
Só então percebi que a esperança não funcionava mais, que o luto não cessaria. Mamãe empacou, teimando em não se recuperar. Foi se despedaçando aos poucos, sem querer se montar de novo. Concluí que não merecia perdão.
Lembro quando meu irmão mais velho alteou a voz e a encarou, num domingo de Páscoa, quase uma década depois do óbito: — Mãe, você devia ao menos se esforçar. Grite. Brinque. Viva. Você não ama a gente? Estamos órfãos de mãe também.
Ela só se tremeu um pouco, mas continuou com os olhos embaçados cadentes. Suas carnes cheiravam a aquário sem peixe desde a partida. As unhas se esfacelaram tais quais cinzas de crematório. Esmalte nenhum pegava naquele casco. Hidratante nenhum tirava o ressentimento da pele. Os cabelos se embaraçaram tanto, que trincaram o rosto da mulher sombra com quem convivíamos. Ela morreu muito mais que o meu pai. Renegou o destino e desdenhou da própria sina.
Achávamos tudo isso uma bobagem, porque chorar não leva ao céu, lamentar não paga conta. Se dona Célia tinha salário e pensão, por que não se dava a prazeres, nem deixava a gente curtir a infância? Era uma ladainha contínua: ela ruminava a doença repentina do meu pai, narrava cada detalhe dos dias no hospital e o fim sem jeito. Teve tanta chance, mas não ressuscitou.
A verdade é que, quando perdi o pai, sofri mais saudade da mãe que eu tinha que do pai que eu não tinha. Ele continuou acessível aos filhos.
Inflexível e fechada a afetos, sempre pronta a repreender nossos divertimentos, minha mãe cortou comédias e perfumes, cores e abraços. Até o jardim foi secando com a dor dela. Os tomates da horta encheram de bicho e nunca mais adoçaram, os antúrios brotavam num rosa pálido, quase branco.
Sem falar nos piolhos, que tomaram conta das cabeças da família. Assim que minha mãe desistiu de nós, os parasitas nos adotaram.
Antes da fatalidade, minha vida foi chocolate. Nós nos lambrecávamos dessa alegria, e era tudo muito espontâneo, como pular no colo de Deus todo dia, como flutuar em piscina morna.
Fazíamos festa até quando alguém destaramelava pum na sala! Assim como os bocejos, nossos flatos contagiavam: dentro em pouco, um ritual de riso e peido se instalava. Uma vez, ganhei o prêmio de Princesa Espingarda. Rimos tanto da condecoração, que até borrei as calças.
Os soluços do papai também nos divertiam. Ele só conseguia parar depois de cravar oitenta e dois pinotes. Nem um a menos, nem um a mais. O cinquentão balançava o barril e se tremia todo a cada ic sucessivo! Era uma farra. Eu e meus irmãos contávamos alto desde o número um, até ele completar a sequência graciosa de espasmos. Minha mãe engrossava o coro com espirros agudos e afinados, enquanto Roberto arrotava grosso. Gozávamos desses poucos luxos e éramos felizes, completos como quê.
Não sei por que a orquestra se desfez. Depois da prematura passagem de seu querido Carlito, minha mãe proibiu qualquer graça, qualquer canção. Isso desencantou a gente, que era tão afeita a ventos e rabiolas. O tempo foi passando, e ela nunca mais se pôs a pino. Foi ficando um lar insuportável, porque ninguém atura a morte por tanta quarentena.
Amanhã vou me casar com o Daniel. Insisti pra minha mãe comprar um vestido vermelho, mas ela não quis. Vai com o mesmo cinza usado no matrimônio do meu primo Geraldo. Fiquei triste, porque ele já está separado há cinco anos, e eu quero viver com o Daniel pra sempre.
O primeiro documento que assinamos, antes até de ficarmos noivos, foi uma Certidão de Vida Enquanto Estivermos Vivos, algo como “Prometemos que o luto terá prazo de validade, em caso de viuvez. Prometemos estimular o sorriso nos nossos filhos. Se morrermos, que a morte seja definitiva, mas não desesperadora”.
Mostrei o atestado pra dona Célia, e ela zombou de mim, com toda aquela mágoa atualizada: “Vá pensando que alguém tem poder sobre a saudade”.
Mas algo me diz que, na hora da festa do casório, a mãe da noiva irá pra cozinha fritar uns bolinhos de arroz.
sábado, 26 de março de 2016
Taramela
por Maria Amélia Elói
2 Comentários
Maria Amélia Elói
2 comentários:
Lindo, emocionou! Parabéns Maria Amélia
Obrigada, Gerci.
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