O vento assobiava e atirava as folhas mortas pelos ares. Manchas vermelhas e castanhas riscavam os céus de chumbo proclamando a morte do verão. Ecos de guerra troavam ao longe em fulgurantes clarões no horizonte enquanto uma voz angelical entoava um cântico triste, perdido na distância.
A pouca distância, o descomunal templo gótico de fachadas graníticas estranhamente erguido sobre alicerces de tijolos barrentos que ameaçavam desmoronar.
Desorientado, caminhei para a igreja e olhei os meus pés descalços com cortes e feridas de muito caminhar. Calquei cada um dos degraus de pedra onde deixei ensanguentadas impressões, indicando o caminho a quem viesse a seguir.
As imensas portas estavam abertas de par em par e eu cruzei a galilé para ver o ar entre as colunatas dominado pelas folhas e pelo pó esvoaçantes que maculavam o espaço sagrado. Dos vitrais, muitos metros acima, desciam focos de brilhantes poeiras que acabavam repousando em estranhas formas sobre o soalho gasto e arrombado.
Caminhei sobre as tábuas onde sabia terem caminhado milhares de fiéis antes de mim, onde marcharam garbosos cavaleiros e reis. As capelas laterais, quer do lado da Epístola quer do lado do Evangelho estavam vazias e nuas, como se os seus ocupantes se tivessem mudado para outras paragens menos agrestes ou simplesmente estivessem cansados a sua eterna vigília. A igreja vazia e só oprimia o meu coração e fazia-me sentir a solidão e a ausência da fé. Temia que, naquele dia de eclipse, se eclipsasse também tudo aquilo em que acreditava.
Chegado ao transepto, vi os púlpitos abandonados e decadentes, cobertos de trepadeiras que desciam descontroladas para o chão, esquecidos dos tempos em que se pregava a palavra do Senhor.
No presbitério a situação não era melhor. O espaço estava cheio de informes pedaços de pedra e alvenaria produto da derrocada da orgulhosa cúpula que em tempos a cobrira. Via-se o céu de chumbo pelo enorme buraco do teto e o disco solar, que conseguia romper entre as nuvens, estava mordido na quase totalidade pela sombra da Terra, anunciando dias negros.
Também o altar estava vazio de imagens e decorações apenas a imagem do Crucificado pendia da parede como uma ameaça sobre quem se atrevesse a aproximar. À esquerda havia um trono dourado vazio. A Férula estava encostada num dos braços e a Mitra com as Ínfulas abandonada no assento. Aguardavam o dono, ou estavam esquecidas, naqueles tempos sem Deus, com a igreja em ruínas, as guerras à porta e o próprio sol ferido de morte?
Apercebi-me só então que, acima das minhas canelas feridas, tinha a bainha da batina rasgada e a sobrepeliz suja e esgaçada. Também a mozeta escarlate estava rasgada e desalinhada e o solidéu desaparecera da minha cabeça. Confuso, ajoelhei frente ao altar e rezei entre lágrimas, temendo que fosse aquele o fim dos tempos há tanto anunciado. No chão a meu lado jazia um bordão com uma tira de tecido branco amarrada onde estavam escritas as palavras: “Peregrinus requiescit”[1]. Rezei com ainda mais fervor sabendo que aqueles tempos, aqueles em que o Trono estava vazio, eram os mais perigosos. As portas dos infernos podiam abrir-se sem que o Sucessor de Pedro cá estivesse para as encerrar com as chaves que o Pescador lhe confiara.
Pedi iluminação ao Senhor e implorei a Maria que intercedesse por nós junto do Omnipotente.
Quando tornei a abrir os olhos havia diante de mim um esbelto e reluzente anjo envergando uma túnica de um branco imaculado que me mostrava um livro de couro envelhecido, e uma tira de seda vermelha que marcava uma página onde se lia a seguinte frase:
“Depois do peregrino eslavo, virá o bávaro que sonhou a paz entre a guerra do mundo, mas o seu reino será curto.”
Uma fita de seda azul marcava outra página que folheei e li:
“Depois do bávaro, virá do novo mundo a humildade e o amor do povo.”
Maravilhado com tais profecias, tentei virar outra folha e o anjo segurou-me a mão, dizendo que não podia saber mais, mas a sua voz era como muitas trombetas que me encheram de terror.
Acordei, assustado e confuso, sentado no meu lugar no conclave. Conseguira adormecer durante o discurso de um dos meus irmãos cardeais, um dos que estava mais próximo, apercebendo-se da minha falta, sorriu-me.
Estava triste, mas depois deste sonho, sentia-me cheio de confiança. Depois do medo da desorientação e da dor, com o desaparecimento do já saudoso João Paulo II, a sua falta seria colmada em breve com um novo sumo-pontífice. Olhei os resultados da primeira votação: Ratzinger… sim, tudo se encaixava, aquele que tentara negociar a paz na primeira guerra. Seria ele o próximo.
Não acabaria aí, porém, apesar de todas as profecias de desgraças e apocalipses; depois dele teremos outro Papa e depois… só o próprio Deus o sabe.
[1] Latim - O peregrino descansa
Manuel Amaro Mendonça
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