“ A sombra de um homem solta-se dele (…) e parte sozinha, percorrendo o mundo”
Salman Rushdie - Quichotte (página.128)
A sombra
Alberto Figueira sentou-se em frente do computador. Estava em teletrabalho, vai para sete meses, tantos quanto durava o rigoroso confinamento. Tempos intermináveis a olhar vigilantemente para dados e mais dados. Um cansaço que ia experimentando dia após dia.
No princípio desses dias ainda andava à volta do quarteirão, um passeio bem alargado, que foi, com o passar dos tempos, reduzido a um caminhar, cada vez mais higiénico, até ficar virológicamente puro, quando deixou de sair.
As compras vinham por encomenda directamente dos super mercados e as refeições compradas à distância eram trazidas por estafetas. As redes sociais iam ficando, cada vez mais, à distância. Culpa da monotonia das conversas. Já ninguém sabia o que dizer e as banalidades e as boçalidades tomaram conta do espectro hertziano. As televisões começavam com surtos virais e acabavam com óbitos…
O afastamento social já não podia incomodar mais a sua saúde mental, já muito debilitada, mas o afastamento físico começava a minar a sua saúde fisiológica. Já tinha esquecido aquela agradável sensação de sentir um corpo quente ao seu lado. Andava toda a gente a fugir de toda a gente.
Ainda pensou furar o confinamento, para poder dar uma satisfação aos desejos da carne, mas factores de vária ordem afastaram aquela intenção. O chamamento era muito forte, porém a lei e o medo venceram.
Sem poder dar um passo, por ali ficou a arrastar-se da cadeira para o sofá e deste para o solitário leito.
Assim também se iam arrastando os dias dentro de um túnel, onde a escuridão vedava a entrada até um minúsculo ponto de luz.
Embora contrariado, Alberto Figueira estava conformando com a situação e pouco mais esperava do futuro. A sua vida profissional e social ia-se fazendo entre as paredes de um apartamento, virado para um beco, que servia as traseiras de alguns restaurantes, onde as vistas batiam num sem número de contentores do lixo. Naquele beco não entrava ponta de sol e, desse mesmo mal, também sofria o apartamento e por arrasto os seus moradores. Os seus moradores, sim, sobretudo um deles, a sombra de Alberto Figueira. Desde que foi decretado o confinamento geral que ele não mais saiu e, por simpatia, também não saiu a sua sombra. Não saiu na rua, porque Alberto Figueira não mais lá pôs os pés e igualmente ela não mais saiu do corpo dele, porque o sol nunca entrava no apartamento. É verdade que havia luz artificial, mas era só de noite e de presença. Praticamente não havia sombras.
Ansiosamente ela esperava que ele desse um passo em direcção a um raio do sol, mas o tempo ia passando e a porta da rua mantinha-se fechada.
E o dia chegou. Radioso. Aos dias da chuva, seguiu-se o dia 24 de Janeiro sem nuvens e com sol.
Amante da lei e cumpridor dos seus deveres, não podia deixar de ir votar nas eleições para a Presidência da República.
A meio da manhã saiu de casa. A sombra destacava-se claramente no chão à sua frente. Na fila da votação, debaixo dum sol brilhante, esperou a sua vez de ser chamado para poder entrar na câmara de voto.
De repente, num acto, cientificamente inexplicável, a sombra “solta-se dele (…) e parte sozinha…”
É a fotocópia do original, no que toca ao aspecto físico, mas é igual ao original no que se refere à vertente intelectual, os mesmos conhecimentos, ou seja, o mesmo interior, até então.
Marcada a cruz no boletim de voto, o homem voltou, sem a sua sombra, para casa e por ali iria ficar até ao fim do confinamento.
Não confinada e em liberdade andava a sua sombra. Para ela bastaram todos aqueles meses, não queria ser mais uma prisioneira dentro de um corpo conformado com a situação.
É verdade que um confinamento é isso mesmo, é não andar por aí à toa, é ficar em casa, mas ele bem podia ter dado alguns passeios, fazê-la sair também um pouco.
Sentindo-se sem grilhetas andava eufórica. O resto do dia foi passado a correr e a saltar de um lado para o outro. Entrava pelas locais de escrutínio e espreitava os votos dos eleitores. Aproveitava o abrir das portas dos carros e esgueirava-se para dentro deles e lá ia para outro lugar. Tanto andou, tanto andou que começou a ficar cansada. Aproveitou estar ali um banco ao sol e deitou-se nele a pensar no seu futuro.
Enquanto acontecia a sesta, Alberto Figueira estava sentado no sofá e sentia-se esquisito. Faltava-lhe qualquer coisa, sentia-se amputado, diminuído no seu ser, não conseguia atinar com o mal. Já tinha tirado a febre e o termómetro marcava 36,5º, não tinha tosse, nem arrepios de frio, não tinha sintomas de Covid 19. Mas que estava estranho, estava.
Soou o toque da campainha e ele levantou-se para ir buscar o jantar que vinha do restaurante contratado para lhe servir o jantar. Ligou a televisão que debitava números, percentagens projecções à boca das urnas e comentários. Deixou-os a falar sozinhos e foi-se embora para a cozinha. Já o jantar ia a meio quando viu uma sombra projectada na porta, como se estivesse a observá-lo de fora de si.
A sombra, depois da sesta, apanhou um autocarro que se dirigia para a zona da sua residência.
Alberto Figueira assustou-se ao ver ali uma sombra e pensou que estaria alguém atrás da porta.
─ Quem está aí? – perguntou, fazendo subir o tom de voz, enquanto se munia de uma faca, para se defender do eventual intruso
─ Calma, não tenhas medo, sou a tua sombra.
─ A minha sombra? A falar? Aí plantada de pé, quando eu estou sentado à mesa? Como é que é possível? A física não é uma batata, é uma ciência e cientificamente o que estás a dizer é um erro.
─ Erro ou não, não te sei dizer. Explicar como é que aconteceu, também não. Só sei que sou a tua sombra e que ando sem ti. Autonomizei-me e não preciso de ti para viver. Ganhei vida própria. Faço o que quero, ando por onde quero. Digo-te mais, a culpa foi tua, porque me abandonaste.
─ Abandonei-te?
─ Sim, vai para meses que te enterraste neste refúgio e nunca mais saíste à rua.
Alberto Figueira que já se tinha levantado para espreitar por detrás da porta, à procura de alguém, estava atónito, confuso e muito baralhado.
─ Então se ganhaste esse dom e és uma sombra livre, o que estás aqui a fazer?
─ Vim de visita, afinal foste o meu criador, não quero ser um ingrato.
─ Obrigado pela consideração, valha-nos ao menos isso.
Depois de uma conversa, tu cá ele lá, a criatura despediu-se do criador e foi à vida, mas deixando a promessa de vir, de vez em quando, visitá-lo.
A sombra viajou por todo o lado, percorreu ruas e vielas, subiu e desceu escadas, entrou em lojas, cinemas e apartamentos. Viu tudo o que podia ver, sem restrições e sem preconceitos. Conheceu novos mundos, muitos povos e outras tantas culturas. Passou despercebida quando quis e mostrou-se quando para isso achou conveniente. Brincou às escondidas e divertiu-se com as partidas que ia pregando, por aqui e por acolá. Atemorizou os mais sugestionados com as coisas do além e levou gente a acreditar que tinha poderes visionários. Foi noticiada nos jornais e teve honras de abertura nos telejornais, que passaram a sua imagem, tirada por um telemóvel. Nesse vídeo, via-se a sombra de um homem a entrar numa janela situada num oitavo andar.
Atrás dos dias vieram outros dias e os tempos da normalidade chegaram finalmente. Pelas ruas da cidade via-se um homem despojado da sua sombra, um ser incompleto que era olhado como se do Demo se tratasse e pelas ruas do mundo via-se uma sombra de um homem, sem homem… Uma alma penada.
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