O campo! Nas décadas entre guerras, o campo é um território habitado e amanhado por chusmas de gente de inúmeras competências rurais. Pastores, ganhões, quinteiros, terceiras tratam de rebanhos, lavras, ceifas, mondas.
Homens e mulheres aproximados fisicamente, na alegria dos trabalhos estivais, estão disponíveis para dichotes carregados de sensualidade e maiores brincadeiras. As descamisadas à obscuridade lunar, abrandado o calor diurno, são especialmente apetecíveis para jogos e folia. Um beijo por cada espiga de milho-rei funciona como atiçador. Quase sempre aparece um tocador de harmónio e o baile acontece; dança de corpos separados, de braços levantados, o corpo a saltitar, o rosto afogueado de entusiasmo, uns toques corporais — quem pode evitar?, quem quer evitar? As paixões incendeiam os corpos, depois dos rostos e, por vezes, uma escapada rápida é inevitável. Nunca dá para muito, às vezes é o início de um namoro, de um casamento. Quantos casais começam nas eiras? Os casados vão-se deitar, mas um dia tão longo ainda tem de prolongar-se mais uns minutos, para apaziguar os corpos, para o sono ser sossegado.
Os homens — e as mulheres — nunca estão satisfeitos. Mesmo os casados podem ficar a cismar com um olhar cheio de promessas, com outro corpo, com a sua apetência, com a sua disponibilidade. Muitas vezes não passam de devaneios, alguma tentativa tosca facilmente desarmada. O patrão tem outra manha, outro ascendente sobre as assalariadas.
Domingos Saruga não se deixou esquecer de umas coxas brancas, robustas e molhadas, cujos sobrejoelhos vislumbrou na ribeira. “Zabel”, a mulher do ganhão, estava a lavar a roupa, metida na água, com a saia enrolada na cintura, enquanto dois gaiatos andavam por ali a brincar com os seixos. Domingos passava a caminho do rancho, na lida desse dia: desbandeirar parte da beirada de milho. Entre saudações e despedidas, houve tempo para uns gracejos:
— Boas tardes! Tá calor, hã? — fez Domingos, com a bota apoiada num pedregulho.
— Boas tardes! Aqui nã se está mal… — Isabel, sorridente, não deixou de esfregar a barra de sabão azul e branco numas calças encardidas.
— Tamém não me importava de estar aí!… — insinuou Domingos. — nõ sei é se nõ m’aumentava o calor… — arriscou.
— Ó patrão, se o calor é desses, o melhor é ir ter com a patroa, a ver se ela lho tira… — lançou a rapariga, em risada.
No domingo seguinte, na missa, depois dos ora pro nobis e dos miserere, o padre veio com uma prática que parecia feita para ele e lhe deu umas ideias. Era a história do rei David e de Betsabé. O rei vira-a a tomar banho, desejara-a e seduzira-a. Como era casada, o rei mandou o marido, militar, para a frente de batalha para morrer, e ficou com ela. Não havia só a coincidência do banho; o nome Betsabé também fazia lembrar Zabel. E a guerra era ali ao lado, em Espanha, em tempos de avançada nacionalista. Às vezes, ouviam-se tiros. Não era má ideia afastar o ganhão, para se poder aproximar da mulher dele.
Nessa mesma tarde, Domingos comunicou-lhe a ordem:
— Amanhã, vais para o Vale do Espinho, lavrar a encosta do Monte da Anta. Vamos lá semear feijão pequeno.
O dito monte ficava a uns bons dez quilómetros e não passava de um terreno aberto.
— Atão, mas não há lá casa nem nada!
— Está bom tempo. Dormes debaixo do carro!
O dia seguinte era dia de mercado de gado na cidade. Domingos não falhava um. Depois de se inteirar dos preços do gado, de um ou outro bocado de conversa e de comer a bucha que levava, entrou numa das duas ourivesarias da cidade e quis ver brincos. De conversas anteriores, sabia que Isabel ambicionava uns brincos novos para levar a um casamento daí a meses.
— É para a sua senhora ou quer melhor? — perguntou o matreiro ourives.
— Vossemecê arranje-me aí uma coisa em conta! — Apesar da importância do motivo, Domingos não queria gastar muito. Se tinha arranjado algum, não era a esbanjar.
Escolheu uns simples, mas de filigrana fina. A rapariga ia gostar.
No dia seguinte, passou “casualmente” pela pequena horta que cedera ao casal e iniciou a aproximação com conversa mole, tendo o cuidado de esperar que os miúdos se afastassem. Andavam na rega da manhã.
— A aguinha é o que vale à horta, senão secava tudo, nõ é?
— O sol já vai alto. Daqui a bocado nem parece que a horta foi regada.
— É o calor do tempo. A esta hora é sempre a subir. É cmó meu...
— Ai, patrão, meta os pés na água qu’isso passa.
— Já experimentei de tudo. Não passa de maneira nenhuma. Mas, eu sei como é que ele passava e quem mo fazia passar... E tu também sabes. Dava-te uns brincos, Zabel!
— Nõ diga isso, patrão, que é pecado — reagiu Isabel, com pouco vigor. O malvado tinha encontrado a palavra mágica.
— Hoje à noite no palheiro, quando eu for arraçoar o gado.
— Ó patrão… Não pode ser… Depois o que é que eu dizia ao meu Zé?
— Que é uma paga por ter ido trabalhar para fora.
Isabel ficou o resto do dia em grande inquietação. Não queria fazer aquilo, por mais que lhe agradassem uns brincos novos. Mas como é que podia dizer “não” ao patrão? Alvoroçado como andava, se calhar ia ficar tão danado que era capaz de despedir o seu Zé. Isso não podia acontecer. Não havia assim tanto trabalho na zona. Em desespero, lembrou-se de pedir ajuda à patroa. Talvez ela intercedesse para que o marido não despedisse o Zé.
À tardinha, antes de o patrão regressar a casa, Isabel contou à patroa as encrencas em que o patrão a tinha enredado.
— Ai, o valhaco! — reagiu Assunção, genuinamente arreliada. Ali ao lado da casa, nas barbas dela, salvo seja? — Deixa estar que eu trato disso. Vai descansada, mas fecha-te em casa. E não digas nada a ninguém. Nem ao teu marido, senão há sangue!
Assunção e Domingos cearam normalmente, mas este parecia um pouco ansioso. No fim, levantou-se e anunciou:
— Vou arraçoar o gado!
Logo que o marido saiu, Assunção deixou a candeia acesa, mas escapou-se rapidamente pela porta das traseiras e entrou no palheiro cautelosamente por uma porta secundária, protegida pelo escuro da hora e um lenço pela cabeça. O marido já lá estava e repetia em surdina:
— Zabel! Zabel!
Assunção já tinha escolhido o sítio — uma zona de palha limpa espalhada no chão, na zona mais escura do palheiro. Fez um “ch, ch” suficientemente baixo, que não desse para identificar o timbre de voz. Domingos seguiu o som. Conhecia bem o palheiro. Em menos de nada, chegou ao pé da mulher. Às apalpadelas, encontrou-lhe o busto. Sentiu a macieza das carnes. Em grande excitação, agarrou aquele corpo disponível.
— Amandei-lhe as mãos às tetas, às nalgas, à abêbera — fanfarronaria, na segunda-feira seguinte, para o amigo de confidências, também agricultor.
Arrastou a mulher para o chão e, em urgência, afastou roupas e pernas.
— Boa com’um raio! Aluada que nem uma bezerra! Encavei-lhe o vergalho naqueles entrefolhos e fiquei ali a regalar-me! À patrão! — concluiria Domingos.
O gozo sobreveio antes do diabo esfregar um olho, intenso, avassalador, tempestuoso.
«Tanta pressa! Até parece que passa fome em casa…» — notava Assunção, atenta e um pouco divertida.
«Parece que levei uma marrada!» — pensava Domingos, ainda atordoado. Depois levantou-se e começou a compor-se. Antes que a mulher se afastasse, meteu a mão no bolso das calças e tateou a mão dela:
— Toma os teus brincos. Ganhaste-os bem! Vai, vai lá! Ma nõ digas nada!
Assunção não tinha preparado nenhuma ação especial; nem imaginara como as coisas pudessem passar-se. Uma ideia perversa assaltou-a: podia repetir a farsa mais vezes. Mas logo reconsiderou. Não podia deixar que ele continuasse a pensar que tinha estado com a Zabel.
— Atão! Sabe-te melhor aqui do que lá em casa?
Mergulhada no escuro, Assunção lamentava não poder ver a cara do marido. Seguiu-se um longo e opressivo silêncio. Nem cara, nem voz. Por um momento sentiu apreensão. Se calhar, não devia tê-lo confrontado já. A reação dele demorou, mas, quando chegou, regozijou-a e deu-lhe a certeza da vitória:
— Rais parta as mulheres! — resmungou alto, afastando-se para deitar feno ao cavalo, à burra e a uma junta de vacas.
Em casa, depois de confirmar que não tinha palhas agarradas à roupa, Assunção apreciou os brincos. Já não se lembrava de quando é que ele lhe tinha dado uns. E o entusiasmo? «Só talvez por alturas do casamento» — calculou, despeitada. «O valhaco!» Com jeito, colocou-os e mirou-se num pequeno espelho, à luz da candeia de azeite. «Ficam-me bem! Acho que vou passar a usá-los. E hei de dar à Zabel os que já não uso, para ela levar ao casamento da prima.»
Recomeçou a arrumar a loiça. Domingos ainda demorou um bocado. Quando entrou, encontrou-a ao pé do lume, mas não disse nada e foi logo deitar-se.
Assunção ficou ainda algum tempo a meditar em tudo o que tinha acontecido. O malvado não tinha estado com outra mulher, mas, para o caso, era como se tivesse estado. A traição não tinha comparação com qualquer outra zanga. Era amargosa e verde como os concilhos. Aqueles brincos seriam o lembrete silencioso de um dia em que Domingos tinha posto o pé em ramo verde. E lhe tinha corrido mal. Que ele teria de encarar todos os dias.
Joaquim Bispo
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Imagem:
José Malhoa, Clara, 1903.
Museu do Chiado, Lisboa.
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4 comentários:
Excelente senhor Joaquim
Obrigado, senhor Anónimo. ;)
Até parece que o José Malhoa leu este conto antes de pintar o sorriso da Clara.
JP
Eh, eh!
O contacto com a Natureza induz um bem-estar que desperta sorrisos. Malhoa devia conhecê-los bem.
Obrigado, JP.
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