Com
um suspiro de cansaço, Maria de Fátima deixou-se cair no seu cadeirão habitual.
Ainda mal iniciara as arrumações que andava a adiar há anos e já se sentia totalmente
exausta. Mas desta vez tinha mesmo de ser. Apesar de ter cedido a casa à
sobrinha com móveis, louças e tudo o mais, havia coisas pessoais que tinha de
organizar, deitando fora tudo o que não quisesse levar consigo para a casinha
onde passaria a viver, bem mais adequada à sua idade e crescente falta de
forças.
Passara
pois a manhã numa azáfama, a separar roupas, algumas que já nem recordava ter
comprado e muito menos usado, a escolher alguns objetos a que estava mais
apegada, enfim, a tentar organizar tudo o que se fora acumulando ao longo da
sua vida, sobretudo nos últimos anos.
Sentindo-se
sem coragem para continuar a andar de um lado para o outro, decidira passar a
outra tarefa igualmente necessária, passar revista a duas caixas cheias de
papeladas e álbuns que trouxera quando a mãe morrera e que nunca tivera tempo e
disposição para organizar.
Como
suspeitava, muito do que continham não tinha o menor interesse ou pelo menos o
suficiente para encher espaço na sua casinha. A primeira caixa foi despachada
em menos de nada, mas a segunda continha um enorme álbum de fotografias que
deixou deliberadamente para o fim, apesar de saber muito bem que iria ficar com
ele.
E
foi já com a segunda caixa despachada e uma boa chávena de chá bem quentinho
que finalmente o abriu.
As
primeiras fotos eram as mais antigas e difíceis de ver. Mas pelas legendas, cuidadosamente
escritas pela mãe na sua “letra artística”, ficou a saber que representavam
bisavós e outros parentes distantes, quase todos mortos ainda antes dela
nascer.
Apesar
do seu mau estado, eram de certo modo a história da sua família e, como tal,
continuariam onde estavam.
À
medida que ia virando as folhas, a qualidade das fotos melhorava e via agora
parentes que conhecera ou de que pelo menos ouvira falar, demorando-se pois
mais em cada uma, a recordar histórias e circunstâncias.
O
álbum tinha um cheiro ténue bastante peculiar, talvez porque a caixa onde fora
guardado durante tantos anos tivera inicialmente um produto contra traças, há
muito desaparecido, claro está. Não era desagradável, mas irritava-a um pouco
não o conseguir identificar.
Com
o virar das folhas esse cheiro intensificava-se um pouco, mas não o suficiente
para poder dizer o que era.
Começou
finalmente a ver fotos suas, sozinha ou com os pais e outros familiares. Parava
agora durante mais tempo em cada uma, acariciando-as até com a ponta dos dedos
como se reencontrasse uma velha amiga. Até que às tantas, ao virar mais uma
folha, em que uma das páginas estava totalmente ocupada por uma única foto, o
tal cheiro a atingiu com mais intensidade, deixando-a à beira de uma revelação.
Mas
não, o que quer que fosse desvanecera-se antes de poder dizer o que era, mas tinha
a nítida impressão de que era algo importante. Fechou então os olhos e respirou
fundo, como sempre fazia quando queria recordar algo que lhe fugia.
Naftalina!
Um cheiro forte a naftalina num local escuro, vozes exaltadas, uma dor numa
perna... E a cena surgiu-lhe tão viva como se tivesse sido na véspera e não há
uns bons 60 anos.
Tinha
3 ou 4 anos e adorava esconder-se no enorme guarda-fatos do corredor onde guardavam
a roupa não usada nessa estação. Devia ser verão, recordava-se do casaco de
peles da mãe junto à cara e de tentar acomodar-se melhor sobre o calçado duro,
sobretudo umas botas que pareciam querer furar-lhe a perna direita a que a
tinham deixado magoada durante o resto do dia. Mas fazia parte do jogo que
inventara, esconder-se até andarem à sua procura ou, no mínimo, até não
aguentar mais.
Já
ali estava há um bom bocado e preparava-se para desistir quando lhe chegou aos
ouvidos a voz da mãe. Nem sabia que estava no quarto, ali ao lado, mesmo assim
era estranho conseguir ouvi-la, a mãe usava sempre um tom suave, nunca a tinha
ouvido erguer a voz.
Mas
desta vez estava quase a gritar, de tal modo que a conseguia ouvir apesar da
porta do quarto e a do armário estarem fechadas.
Sentiu
medo, o medo instintivo de uma criança ao detetar algo estranho no seu
universo. E encolheu-se ainda mais, receando, sem bem saber porquê, ser a causa
da zanga da mãe.
Lembrava-se
perfeitamente de algumas das frases que ouvira, embora na altura não lhes
entendesse o sentido. Duas delas, sobretudo, surgiram-lhe tão nítidas como se
as estivesse a ouvir agora.
-
Sim, sei que é tua, mas não me podes exigir que estrague a minha vida e a dela
para ir contigo. E muito provavelmente nem poderia ficar com ela, sabes bem
como ele é, Tiago.
Falava
então com o tio Tiago, bom, não era um tio a sério, era só um amigo do pai que
os visitava muito e a quem decidira chamar tio por não ter nenhum, ao contrário
dos seus amigos.
Não
pensava nele há anos, desaparecera quando ainda era muito pequena, tendo
recebido na altura uma vaga explicação de que fora para outro país.
Esquecera-o, como esquecem as crianças, até ver aquela foto um pouco desbotada
de um homem de cara simpática, apesar do ar demasiado sério e do nariz muito adunco.
Instintivamente,
levou a mão ao seu, sempre lhe desagradara por ser o único na família, mas via
agora claramente que o herdara do seu verdadeiro pai.
Luísa Lopes
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