Segunda-feira,
17 de janeiro de 2022. Devidamente anotado na memória. A data em que renasci.
7h5min, exatamente a hora em que pus o primeiro pé na rua, saindo de casa. Embaixo
de chuva, rumo à Avenida Aguanambi, andava distraída, convencida de que seria
um dia normal como os outros. Aliás, estava feliz e tranquila, porque a chuva
me traz um alívio incomum, como se me lavasse, a água me levasse o peso; o dia
de fato parece que passa mais rápido, mais leve. O grande infortúnio é que teria
de trabalhar no estoque de uma grande loja, pelo segundo ano consecutivo.
Levantar, para mim, era um fardo, porque, logicamente, teria de me deparar com
o frenesi dos dias; pessoas sem tempo, descontando suas frustrações em mim;
chefe gritando, me chamando de “lerda” para baixo; e eu tentando manter a
calma, porque o salário-mínimo me mantinha em Fortaleza, e pagava os meus
estudos. Na cabeça, uma seta: vou me formar em pedagogia e trabalhar com
crianças, numa escola infantil. Enquanto não arranjava um emprego na área,
teria de me virar assim; um mal necessário. Mãe, dona Zumira do Chagas, era a
minha inspiração e preocupação. Ela morava a cerca de 180 quilômetros, na
cidade de Quixadá, onde me criei. Digo por que a preocupação e a inspiração:
ela, sozinha, cuidou de dez filhos, todos hoje adultos, dispostos e
trabalhadores; e hoje está doente do coração, não pode fazer esforço, nem mesmo
roçar, o que tanto gostava de fazer. Portanto, a minha sina era cumprir a meta
para, se possível, voltar para a minha terrinha e lá montar uma escola de
educação infantil. Andando e pensando nisso, e em tantas outras coisas, fui
arremessada por uma moto para o outro lado da rua, quase esquina com a Avenida
Aguanambi. Lembro-me de alguns detalhes – como o som da minha perna quebrando
com a pancada –, mas, depois que caí na calçada, não sei mais de nada. Segundo
o piloto da moto, fiquei desacordada por uns dois minutos, e tive uma
convulsão. Ele estava desesperado, ainda no hospital. Pelo menos, não foi um
desses canalhas que matam e fogem. Ele me socorreu. Chamou o Samu e, enquanto
eu estava apagada, jogava água gelada na minha cabeça, para limpar o meu rosto
e me acordar. Despertei praticamente com a zoada da ambulância. Havia uma
multidão me cercando. Só Joel, o que causou o acidente, e uma senhorinha de
nome Elvira, fizeram os primeiros socorros, que, segundo o médico, permitiram
que eu vivesse. Felizmente, não houve nada sério com a minha cabeça, fora os
cortes e as luxações. A perna, de fato, quebrou em três partes, e tive de fazer
duas cirurgias corretivas, em datas diferentes. Joel cuidou de mim no tempo que
pôde. Ele era entregador de comidas por aplicativo. Disse, e cumpriu o
prometido: que compraria os remédios e ficaria ao meu lado, nas suas horas
livres. De tanto ele ir me visitar, uma leve raiva foi se apagando. Ele me
contava que, naquele dia, estava distraído pelo volume de atividades; que não
havia dormido direito, e sempre me pedia desculpas, com tanta sinceridade, que
eu o desculpava e dizia-lhe que não repetisse mais o pedido; que estava tudo
resolvido entre a gente. Também abriu o jogo da vida, dizendo que era do
interior, de Aracoiaba – que, por sorte, eu conhecia, e era o motivo de nossas
conversas intermináveis, sobre o sertão; que morava só na cidade há cinco anos;
e que tinha o desejo de largar essa correria. Vários pontos se afinavam. Tínhamos
a mesma origem e os mesmos valores. Passei a olhá-lo com outros olhos, e aí o
achei até bonitinho – um sinônimo para feio arrumado. Logo, considerei que ele
era interessante; não era de se jogar fora. Quando saí do hospital, com um mês,
cheia de ferros na perna, já foi com Joel sendo o meu namorado. As enfermeiras
se despediam e batiam palmas; fizeram a maior festa. Lúcia, uma das que virou
minha amiga, achava aquilo muito improvável e dizia ser um milagre. Para mim,
era um tremendo exagero, mas ouvia de bom grado. Com mais um mês, me mudei de
mala e cuia para a casinha do Joel; sim, nos juntamos. Eu precisava de cuidados
e ele, de companhia. Sei que, por ironia do destino, encontrei um amor, do
nada, numa situação estranha e difícil. Estamos há três anos juntos, com a
promessa de um casamento formal, de papel passado, e um filho, que chegará em
quatro meses. Nossa história, até hoje, serve de estímulo para as almas
padecidas. Lúcia, aquela nossa amiga, ainda acredita num grande amor, mas
rejeita, veementemente, um começo trágico como o meu. “Mulher, se entrega!”. E
assim ficamos horas e horas rindo, esquecidas do tempo-presente.
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