Sabes
que nunca me meto onde não sou chamada, mas francamente! Tu e o António?!
É
quase tão mau como a tua irmã e aquele desgraçado. Um arzinho sonso de menino
bem-comportado e vê lá no que deu, não vejo os meus netos há meses. E não lhes
dei motivos para isso, sabes bem que nunca me meto na vida dos outros,
limitei-me apenas a dizer o que pensava de um homem que se despede de um bom emprego
para ficar a viver à custa da mulher a fim de seguir a veia literária. Veia
literária! Já viste o nojo que ele escreve? Não que eu tenha lido tudo, nunca
consegui passar das primeiras linhas, mas pela amostra...
Como
disse à Arminda, sabes, a minha vizinha de baixo que sofre de inchaço das
pernas por estar horas sentada, se aquilo é escrita, qualquer um o pode fazer,
não vale a pena largar tudo por isso. Vê lá que amuou! Que culpa tenho eu que o
filho seja outro sonsinho que vive à custa dos pais enquanto espera pelo
estrelato musical? Estrelato! Com aquela voz de cana-rachada! Sim, bem o ouço
quando “ensaia” com os amigos, outros molengas como ele.
Mas
aquilo é uma família desgraçada, o pai, um manga-de-alpaca que mais parece um
agente funerário, sempre com aquele ar lúgubre e pastinha na mão para parecer
ocupado e não conversar com ninguém, não me lembro de termos trocado mais de
meia dúzia de palavras, parece até que me evita, chega a usar as escadas “para
bem da saúde” quando me vê à espera do elevador. E a filha, então, se visses
como cria o bebé! Bem tentei dar-lhe umas orientações, mas pôs logo uns ares
ofendidos e agora finge que não me conhece. Francamente, uma pessoa a tentar fazer
o bem e anda por aí a chamar-me intrometida! Intrometida, eu, que nunca
interfiro!
Mas
tu e o António... perdeste a cabeça? Sabias que o pai foi suspeito de desviar
dinheiro da empresa onde trabalhava? Bem sei que não deu em nada, acabaram por
dizer que fora apenas um engano, mas onde há fumo... E a mãe? Uma
língua-de-trapos, sempre armada em vítima e a queixar-se de que se farta de
trabalhar, mas passa horas na coscuvilhice com
quem calha. Vais mesmo ligar-te a gentinha dessa?
E
vão viver de quê? Sim, os tempos são outros, como estás sempre a repetir, e sei
que ganhas bem, muito bem, mesmo, mas no meu modo de ver é ao homem que compete
sustentar a família, mesmo se a mulher trabalha. E o teu António, sem estudos
de jeito, sim, filosofia não é curso que se veja, só se fosse para o ensino,
mas ele é “fino” demais para isso, nunca o poderá fazer, pelo menos ao nível a
que foste criada. Vais ser tu a pagar as contas enquanto ele medita no
“significado do universo”, como tentou impingir-me?
Mas
a vida é tua, faz o que quiseres, não me quero meter, sabes bem que nunca o
faço.
Luísa Lopes
Imagem feita com QuickWrite
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