Uns
declaram o universo como se feito e efeito do nada, outros acreditam-no o corolário
de relações ocultas e desconhecidas, ou obra de seres divinos, ou, mais então,
resultado de transformações a nós inescrutáveis e inomináveis. Mistério
semelhante dá-se com a atividade artística e seus ânimos criativos, e se muitos
a presumem mero, e fortuito, acontecimento, entre os arautos desta convicção
não figurava Diones. Pois a arte tem sua origem na destruição, declarava ele, e
até os casuais esboços ou linhas hão de reivindicar, para existir, a extinção
de entes e objetos, de formas e essências associadas ou não às obras
concebidas. Tal elo destrutivo é personificado, de modo evidente, na figura do
artista vitimado por seus próprios excessos, o artista cujo sacrifício resulta
em perspectivas inéditas e obras grandiosas, e todavia as mesmas leis de
aniquilação e gênese regem a vida dos criadores e criadoras harmoniosos e
saudáveis, dos homens e mulheres exemplares – em comum às duas classes, e aos
muitos outros artífices de sonhos, o desconhecimento quanto a esse nefasto
mecanismo.
Assim
refletia Diones e, com suas palavras, anotava os raciocínios e observações num
caderninho de couro. Paisagista renomado, contrariava a sensibilidade de seu
intelecto a constituição taurina, as mãos grossas e calejadas e o maxilar
definido, e malgrado agora, após muito meditar acerca da arte, não mais
ignorasse as condições para a concepção de suas obras, desconhecia os elementos
específicos que foram, eram e seriam sacrificados ao conceber um quadro ou
tela.
Pertencente
à classe dos regrados e ordenados, antes de levantar-se calçou os chinelos, e
ao avivar o lume da lareira sobrevinham-lhe pensamentos relativos não só ao
reconhecimento de padrões mas, também, às medidas e limites desta faculdade; e
almejava, como o fogo de certa forma almeja o céu, descobrir as especificidades
do sistema de pesos e contrapesos a si imposto pelas musas. Estagnado frente ao
obstáculo de um enigma metafísico, aprisionado por muralhas insensíveis às suas
virtudes, a saber, a imaginação e a invenção, Diones postou-se em frente ao
cavalete e, antes de iniciar a próxima pintura, antes da primeira pincelada, suplicou
às suas outras versões, e aos seus outros e silenciosos eus suplicou uma
revelação.
Assim
fez, assim foi.
E
terminou a paisagem em quatro meses.
Suas
reflexões eram, então, distintas, e sentado no sofá, ao abrir o jornal como há
tempos não abria, leu acerca de dois infantes falecidos em um acidente. A
notícia atingiu-o no espírito. Soube, como só se sabem as verdades, não através
de argumentos, números ou palavras, mas mediante certezas interiores, dir-se-ia
a inefável linguagem da alma, que ambas foram sacrificadas em benefício de sua
última tela, e já de pé e caminhando, nem tanto se culpando, para certificar-se
da relação decidiu por iniciar outro painel.
Foram
mais três, quatro meses, e concluiu-o. Ao fim do quadro, e do seguinte, tomou
conhecimento de mais acidentes com crianças, todos eles fatais: a primeira,
decapitada por um trem de carga; a segunda, atropelada pelo triciclo de um
palhaço de circo. Suando frio, mordendo os lábios, enfim deslindara-se o macabro
mecanismo de seu criar, e para além do fato de esta descoberta demandar um
número insignificante de acontecimentos, ou de provas, abismava-o a
circunstância de como certos eventos, quando esclarecidos, afiguravam-se tão
simples, tão simples e tão terríveis, a ele não apresentando-se alternativa
senão a de abandonar a arte, deixar de viver e deixar-se ficar. Fiel à
resolução, ordenou os pincéis e vasilhas, espátulas e paletas e, pelo período
de dois meses, aposentou-se – e só tornou a pintar quando uma criança malcriada
lhe chutou a canela.
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