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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A grande ereção

 

ou

A educação de José Alcaravão


Geralmente, o queijeiro fazia a ronda das quintas sozinho, mas, depois do tiro que um peixeiro levara para lhe roubarem a bicicleta a motor, passou a levar o filho ou a mulher na carroça. Sempre eram mais dois olhos atentos a qualquer perigo.

Naquele dia de início de primavera, depois de ter carregado as caixas dos queijos da Tapada das Naves, deve ter achado que a carga podia resultar em atolamento, se voltasse pelo mesmo caminho, e perguntou ao agricultor por uma alternativa.

Vomecê vai por este caminho, passa além ao pé daquele pinhal, depois vira para a direita, sobe uma barreira e logo a seguir encontra o caminho do Sobral. Ó Zé, vai aqui com o ti Alfredo para lhe ensinares o caminho pró Sobral.

Zé, moço de uns catorze anos, filho do pastor, já ia dando ajuda no que fosse preciso, geralmente com o gado. Subiu para a carroça e sentou-se ao lado da mulher do queijeiro. Não havia que enganar, mas estava contente por poder ajudar.

Já no fim do trajeto junto ao pinhal, ouviram-se relinchos vivos da égua do patrão, que pastava no lameiro próximo, presa por uma corda longa, ao contrário das peias habituais. O cavalo respondeu com igual vigor. O queijeiro incitava o cavalo, para que avançasse e ultrapassasse aquele ponto crítico, mas mais altos interesses se levantavam. A égua, que devia estar no cio, começou a correr às voltas até aonde a corda permitia, mas num puxão arrancou a espia que prendia a corda e partiu a galope para junto do cavalo, arrastando a corda.

Ali chegada, os animais cumprimentaram-se com relinchos e toques de focinhos, para grande preocupação do queijeiro que já previa sarilhos. Saltou da carroça e tentou afastar a égua, mas ela só tinha um intento. Rodou e virou a traseira para o cavalo que não se fez rogado. Cheirando-a, redobrou o desvario de entusiasmo. Mesmo preso à carroça, empinou-se para montar a égua recetiva. Ao queijeiro não devia interessar a situação, porque passou a bater com o cabo do chicote no cavalo, mas em vão. O cavalo, que já apresentava uma ereção de mais de meio metro, tateava, em tentativas de cópula, que não demorou. Perante o constrangimento da mulher do queijeiro, que ria para esconder o mal-estar, e do rapaz, também intimidado pela presença da mulher, o cavalo não tardou a acertar e a completar a cobrição, em sucessivos empolgamentos enérgicos. Desmontou, enfim, enquanto uma cascata de esperma se despenhava da égua e se esparramava no chão.

Todos devem ter pensado que, finalmente, terminara aquele desacato, enquanto o queijeiro tentava enxotar a égua, mas ela não arredava casco. O cavalo, que não devia saber o que era período refratário, voltou a alçar-se e a tentar penetrar a égua, mas o queijeiro puxava-lhe o membro para o lado, grosso como um braço, teso como um tronco, frustrando o encaixe. Então, todos assistiram, atónitos, à ejaculação torrencial do cavalo para o chão. Golfadas consecutivas de esperma. Parecia o cano da bomba manual do poço da quinta.

Isto é que vai aqui uma pouca vergonha! — ria-se a mulher, tentando quebrar ou esbater o embaraço.

O moço não tinha nada adequado para dizer naquela situação e fazia um sorriso comprometido, mas os sentimentos eram de assombro e talvez de alguma inveja inconfessada.

Novamente o cavalo desmontava e novamente remontava, o que causava sobressalto nos dois ocupantes da carroça, que dava súbitos solavancos e parecia que ia tombar para trás, de cada vez que o animal se animava. À ordem do homem, ambos desceram, aliviados. Mas a égua não se dava por satisfeita e o cavalo não deixava de corresponder. Apesar dos esforços vãos do queijeiro, puxando com quanta força tinha o membro do cavalo para fora da égua, sucediam-se os jorros, quer fora, para o chão, quer dentro, que depois vazava também para o chão. Parecia que tinha sido ali entornado um caldeiro de leite. Mesmo vivendo no campo, José nunca tinha assistido à cobrição de uma égua e não suspeitava que um cavalo pudesse ser tão fecundo. Nem esperava que uma fêmea pudesse ter desejos sexuais tão veementes e manifestá-los a ponto de tomar a iniciativa. A sua experiência de vida ainda era pouca.

Finalmente, a égua afastou-se, e o cavalo também já ia dando sinais de cansaço.

Daí a pouco, a carroça partiu, puxada por um cavalo cabisbaixo, regressado à rotina de servidão, depois de um episódio exaltante e irreverente. Certamente que tinha sido um dia excecional, mas agora só lhe restava conformar-se e esperar por outra prenda da sorte. O rapazote foi reprender a égua, agora sossegada a comer erva.

Chegado ao pé do patrão, contou-lhe o que tinha acontecido. Este não se mostrou zangado, nem preocupado, como estava o queijeiro, e até se interessou por tentar perceber se a égua teria ficado coberta. Ao fim e ao cabo, uma cobrição implicava levar a égua a quatro léguas de distância. E pagar vinte escudos, o que, em princípios de 60, não era nada pouco.

Para José, o episódio fora marcante. O entusiasmo da égua, a pujança do cavalo e aqueles inacreditáveis jorros de esperma foram relembrados várias vezes ao longo do dia. O seu desabrochar juvenil era pródigo em autogratificações, mas, mesmo no auge dos maiores desvarios, em que chegava a passar-lhe pela cabeça experimentar um buraco na terra quente, uma melancia madura, uma ovelha, o resultado era sempre assaz modesto. Tal como nessa tarde, entre giestas, beijado pelo sol e exposto ao universo.

Pouco antes da alvorada seguinte, na sua enxerga de palha, José começou a emergir da nebulosa do sono, naquele estado em que os níveis de consciência do mundo envolvente passam por uma fase muito incipiente e o estado do próprio corpo ocupa preponderância global. A vascular ereção matinal transmitia de si ao orgulhoso semiadormecido — de barriga para cima e pernas abertas — a sensação de massas e volumes grandiosos, imensos. Naquele nível de consciência ilusório, sentia que possuía magnitude para encher qualquer espaço, ainda que descomunal, ainda que de proporção sobre-humana. Qual cavalo, qual elefante? Nenhum menir, obelisco ou outra metáfora arquitetónica da virilidade podiam comparar-se com aquela magnificência gloriosa, cósmica. Partia de si como que o basilar eixo do mundo que, penetrando nas profundezas do espaço, semeava vias lácteas por todo o firmamento, em espasmos de êxtase. O contentamento e o orgulho que tais desmedidas lhe transmitiam eram igualmente incomensuráveis, de plenitude mística. Aleluia! Glória a Deus nas alturas!

Durante um tempo suspenso, que não quer que acabe, José desfruta o estado de graça. Mas, aos poucos, o nível de consciência do mundo que o rodeia aumenta e ele pressente que se aproxima alguém. Lembra-se que pode ser a mulher do queijeiro. Como é que vai explicar tamanho despudor? Não consegue esconder a atrapalhação. A experiência de beatitude omnipotente esvai-se e ele apercebe-se de que, afinal, cabe facilmente nas próprias ceroulas.

Abre os olhos; é a mãe:

Zé, filho, acorda! Está a nascer o sol. Vá, que o teu pai já está à espera para irem ordenhar as ovelhas!

Levanta-se ainda ensonado, veste-se às apalpadelas, sai para o lusco-fusco, alumiado pela lembrança boa dos últimos minutos do sono, um archote aceso para todo o dia.


Joaquim Bispo

*


Imagem:

Almada Negreiros, Centauros, (tapeçaria), 1959.

Hotel Ritz Four Seasons, Lisboa. 

* * *


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4 comentários:

Apreciei principalmente a descrição da cena da cópula e do comportamento dos 3 humanos perante a mesma.
Pus-me a imaginar a inclinação e os movimentos da carroça , e fartei-me de rir quando a mulher do queijeiro comenta da pouca vergonha que por ali vai..
Muito bom.

Sim, é uma situação delicada para todos os envolvidos, mesmo os não-humanos.
Abraço!

mais uma bela história.
Um grande abraço Joaquim

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